domingo, 3 de fevereiro de 2008

BIBLIOTECA E CÂNONE DE UMBANDA


BIBLIOTECA E CÂNONE DA UMBANDA
Charles Odevan Xavier

Este estudo pretende analisar o acervo da Biblioteca da Cabana Luz do Congo – situada na Rua Gonçalves Lêdo, 1779 no bairro Piedade em Fortaleza – no sentido de buscar saber quais são os livros canônicos e quais seriam os livros proscritos da Umbanda, se é que eles existem.

SOBRE O ACERVO

O acervo da Cabana Luz do Congo foi organizado pelo pai de Santo da casa, Francisco Antonio dos Santos (pai Didi), hoje falecido, no ano de 1968. Parte do acervo foi comprado e outra parte foi doada ao longo dos anos, segundo informou o filho, Julio Francisco dos Santos, responsável pelo espólio do pai e pela adiministração executiva e financeira do Centro.

Seu Júlio informou que não há uma estatística de quantos pessoas utilizaram ou utilizam o acervo ao longo dos anos, que este tipo de informação se perdeu com a morte do pai. O que ele sabe informar com absoluta certeza, é de que o acervo atrai mais a atenção de pesquisadores das Universidades, do que propriamente aos frequentadores e dirigentes da casa. Este dado é grave, quando pensamos no perfil sócio-econômico dos frequentadores e dirigentes da casa: pessoas escolarizadas da classe média, funcionários públicos, profissionais liberais, comerciantes e empresários. Ou seja, os umbandistas cearenses não gostam de ler, pelo menos, na maioria dos casos.

Diante desse dado perguntei qual era a função de uma biblioteca que não desperta interesse. Seu Júlio respondeu que a intenção do seu pai ao compar do próprio bolso, reunir e organizar o acervo, era a de difundir uma umbanda esotérica iniciática em Fortaleza – corrente da qual a Cabana Luz do Congo é o único lugar na capital cearense, que professa este tipo de umbanda.

O acervo se divide por assuntos, sendo eles: Umbanda, Quimbanda, Kardecismo, Esoterismo, Racionalismo Cristão, Pietro Ubaldi, Budismo, História, Rosa Cruz, Filosofia, Chama Sagrada, Yoga, Diversos e duas prateleiras cheias de livros protestantes e católicos.

É interessante perceber a presença de livros do cânone protestante e católico numa casa de Umbanda. Pude conferir nas duas prateleiras obras evangélicas da Bible Students Association, dos Girões e da Casa Publicadora Brasileira, em títulos como as traduções de João Ferreira de Almeida do Novo Testamento e exegetas como E. G. White; como também, pude conferir títulos de duas importantes editoras católicas: Vozes e Paulinas.

Tal informação nos leva a supor que Pai Didi queria promover um diálogo inter-religioso, antes mesmo da moda ecumenista da década de 70 e um debate científico, que houve enquanto o mesmo dirigiu grupos de estudos, antes de ser vitimado pela velhice e doença.

PARA QUE SERVE UM LIVRO DE UMBANDA?

Muitos poderão perguntar qual é a utilidade de um livro umbandista, como por exemplo, um amigo da faculdade ao me ver com um livro, cuja capa tinha impresso a palavra “umbanda”, perguntou se era um manual de feitiços.

É curioso de que alguém ao ver um indivíduo com a Bíblia Sagrada, não faz a mesma pergunta, mesmo que o Antigo Testamento tenha uma coleção de feitiços feitos por Moisés para destruir os povos inimigos.

Assim, somos levados a perceber o caráter eminentemente prático do culto umbandista no imaginário da população brasileira, pois como mais de uma vez afirmaram certas autoridades do espiritismo kardecista, a Umbanda seria um mediunismo sem doutrina.

Analisando o acervo da Cabana Luz do Congo, podemos responder parte das perguntas feitas por leitores que nunca leram livros de Umbanda.

Na obra “A Cartilha de Umbanda” de Candido Emanuel Felix,publicada no Rio de Janeiro em 1965 pela editora Eco, temos perguntas do tipo: o que é umbanda? Pode-se aceitar Umbanda como religião? Como defenir o medium de incorporação? Como pode o medium trabalhar numa tenda? Entre outras. Deste modo, um livro de umbanda serve para divulgar aspectos doutrinários e não apenas limitar-se a conjuntos de descrições de feitiços ou de oferendas e receitas culinárias para este ou aquele orixá. Ou seja, a Umbanda, contrariando o diagnóstico de espíritas kardecistas apressados e desinformados, tem doutrina sim.

QUAL O CARÁTER DA DOUTRINA UMBANDISTA?

A doutrina umbandista existe e foi reunida por WW da Matta e Silva, em dez livros publicados pela Editora Freitas Bastos entre os anos das décadas de 60, 70 e 80. E pode ser conferida também nas obras do pai de santo e médico F. Rivas Neto e do poeta Roger Feraudy.

O leitor mais atento perceberá o caráter mestiço da doutrina umbandista, ao reunir influências afrodescendentes, indígenas, católicas, judaicas, islâmicas, kardecistas, rosa-cruzes, maçônicas e da Teosofia de Madame Blavatsky. Pois como o culto, a doutrina umbandista é uma espécie de síntese religiosa de todos os povos que existem na terra. E por ser síntese, ela é complexa e profunda. Tal fato talvez afastem os leitores umbandistas, que receiosos de nada entenderem ou acabarem confusos com esse cipoal de referências, acabam não lendo as obras que com tanto esforço Matta e Silva e seus discípulos sistematizaram.

EXISTE UM CÂNONE UMBANDISTA?

Geralmetnte quando se pensa em livros da tradição critã a noção de cânone pode vir à baila. Pois se sabe que os livros canônicos seriam aqueles aceitos e reconhecidos pelas altas hierarquias da Igreja Cristã. Já os apócrifos ou proscritos seriam aqueles livros que circularam na época de Cristo e foram – parte deles – descobertos nas cavernas salgadas de Qumram no Mar Morto em 1948. Estes livros foram e são mal vistos pela Igreja Cristã por revelarem dados e narrativas inconvenientes, como a suposta personalidade travessa e malvada da infância de Jesus Cristo ou o seu suposto casamento cheio de filhos com Maria Madalena.

Entretanto, hoje parte da Igreja já sabe conviver com os conteúdos estranhos e extravagantes desses livros. Tanto que já é possível encontrá-los nas livrarias católicas.

Em se tratando da Umbanda, a noção de cânone teria mais um fundo literário do que propriamente teológico, pois ao contrário da Igreja Cristã, a Umbanda não dispõe de um clero organizado e hierarquizado a policiar seus escritores. Assim, os livros do medium WW da Matta e Silva seriam canônicos no sentido de bem escritos e sistematizados.

Por isso, fica difícil de estabelecer um critério semelhante ao da Igreja Cristã, para tratar de supostos livros proscritos dentro do universo editorial umbandista.

Entretanto, como venho lendo o acervo da Cabana Luz do Congo desde o ano de 2002, posso falar não propriamente em livros proscritos, mas em livros toscos e mal escritos em profusão.

São livros com baixa fundamentação teórica, hesitantes e confusos.

Seriam aquelas obras que a partir do índice ou da ausência dele, dedicam-se mais aos aspectos litúrgicos ou ritualísticos da umbanda, do que propriamente em devassar suas origens e estabelecer parâmetros doutrinários.

Porém, tudo aqui é novo como sabiamente comentou o ogã da Cabana Luz do Congo. Ele mesmo nunca tinha parado para pensar na possibilidade de livros proscritos, até pelo fato inegável de que os praticantes de Umbanda não se interessam nem mesmo pelos livros bem feitos.

Assim, para concluir percebemos que nossa investigação apenas começou e partindo da constatação de que o público leitor umbandista prefere mais, quando se dispõe, a ler pontos cantados no intuito de decorá-los ou receitas de banhos de descarga, estaremos mexendo não apenas com problemas de uma comunidade religiosa específica, mas com o terrível hábito brasileiro de não gostar de ler.

Mestrando em Letras pela UFC.

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