sexta-feira, 1 de abril de 2011

DORIVAL CAYMMI E A AFRO-RELIGIOSIDADE




DORIVAL CAYMMI E A AFRO-RELIGIOSIDADE
Autor: Charles Odevan Xavier

Este estudo visa analisar a obra do compositor e cantor baiano Dorival Caymmi e suas relações com a afro-religiosidade.
Dorival Caymmi compôs inspirado pelos hábitos, costumes e as tradições do povo baiano.[1] Tendo como forte influência a música negra, desenvolveu um estilo pessoal de compor e cantar, demonstrando espontaneidade nos versos, sensualidade e riqueza melódica. Morreu em 16 de agosto de 2008, aos 94 anos, em casa, às seis horas da manhã, por conta de insuficiência renal e falência múltipla dos órgãos em consequência de um câncer renal que possuía há 9 anos..[2] Permanecia em internação domiciliar desde dezembro de 2007. Poeta popular, compôs obras como Saudade de Bahia, Samba da minha Terra, Doralice, Marina, Modinha para Gabriela, Maracangalha, Saudade de Itapuã, O Dengo que a Nega Tem, Rosa Morena.
Caymmi era descendente de italianos pelo lado paterno, as gerações da Bahia começaram com o seu bisavô, que chegou ao Brasil para trabalhar no reparo do Elevador Lacerda[3] e cujo nome era grafado Caimmi. Ainda criança, iniciou sua atividade como músico, ouvindo parentes ao piano. Seu pai era funcionário público e músico amador, tocava, além de piano, violão e bandolim. A mãe, dona de casa, mestiça de portugueses e africanos, cantava apenas no lar. Ouvindo o fonógrafo e depois a vitrola, cresceu sua vontade de compor. Cantava, ainda menino, em um coro de igreja, como baixo-cantante. Com treze anos, interrompe os estudos e começa a trabalhar em uma redação de jornal O Imparcial, como auxiliar. Com o fechamento do jornal, em 1929, torna-se vendedor de bebidas.[3] Em 1930 escreveu sua primeira música: 'No Sertão", e aos vinte anos estreou como cantor e violonista em programas da Rádio Clube da Bahia. Já em 1935, passou a apresentar o musical Caymmi e Suas Canções Praieiras. Com 22 anos, venceu, como compositor, o concurso de músicas de carnaval com o samba A Bahia também dá.[3] Gilberto Martins, um diretor da Rádio Clube da Bahia, o incentiva a seguir uma carreira no sul do país. Em abril de 1938, aos 23 anos, Dorival, viaja de ita (navio que cruza o norte até o sul do Brasil) para cidade do Rio de Janeiro, para conseguir um emprego como jornalista e realizar o curso preparatório de Direito.[3] Com a ajuda de parentes e amigos, fez alguns pequenos trabalhos na imprensa, exercendo a profissão no jornal Diários Associados, ainda assim, continuava a compor e a cantar. Conheceu, nessa época, Carlos Lacerda e Samuel Wainer.[3]
Foi apresentado ao diretor da Rádio Tupi, e, em 24 de junho de 1938, estreou na rádio cantando duas composições, embora ainda sem contrato. Saiu-se bem como calouro e iniciou a cantar dois dias por semana, além de participar do programa Dragão da Rua Larga. Neste programa, interpretou O Que é Que a Baiana Tem, composta em 1938. Com a canção, fez com que Carmen Miranda tivesse uma carreira no exterior, a partir do filme Banana da Terra, de 1938. Sua obra invoca principalmente a tragédia de negros e pescadores da Bahia: O Mar, História de Pescadores, É Doce Morrer no Mar, A Jangada Voltou Só, Canoeiro, Pescaria, entre outras.[1] Filho de santo de Mãe Menininha do Gantois, para quem escreveu em 1972 a canção em sua homenagem: "Oração de Mãe Menininha", gravado por grandes nomes como Gal Costa e Maria Bethânia.
Nas composições de Caymmi (Maracangalha - 1956; Saudade de Bahia - 1957), a Bahia surge como um local exótico com um discurso típico que estabelecera-se nas primeiras décadas do século XX. Referências à cultura africana, à comida, às danças, à roupa, e, principalmente à religião. Com a Primeira Guerra Mundial, um lundu de autoria anônima, com o nome de "A Farofa",[5] trata não tão somente do conflito como também de dendê e vatapá, na canção "O Vatapá".[6] O compositor José Luís de Moraes, chamado Caninha, utilizou, ainda em 1921, o vocábulo balangandã, no samba "Quem vem atrás fecha a porta".[7] A culinária baiana foi consagrada no maxixe "Cristo nasceu na Bahia",[7] lançado em 1926. No final da década de 1920, é associado à Bahia a mulher que ginga, rebola, requebra, remexe e mexe as cadeiras quando está sambando, o que surpreende na linguística, tendo em vista que o autor não era nativo do Brasil. O primeiro grande sucesso O que é que a baiana tem? cantada por Carmen Miranda em 1939 não só marca o começo da carreira internacional da Pequena Notável vestida de baiana, mas influenciou também a música popular dentro do Brasil, tornou-se conhecida a ponto de ser imitada e parodiada, como no choro "O que é que tem a baiana" de Pedro Caetano e Joel de Almeida ou na canção "A baiana diz que tem" de Raul Torres. Apesar das produções anteriores, as composições de Caymmi são as mais lembradas sobre a cultura baiana.
Na composição “A Jangada voltou só” vemos o componente místico e católico do povo baiano:
“A jangada saiu
Com Chico Ferreira e Bento
A jangada voltou só
Com certeza foi lá fora, algum pé de vento
A jangada voltou só...
Chico era o boi do rancho
Nas festa de Natar
Chico era o boi do rancho
Nas festa de Natá
Não se ensaiava o rancho
Sem com Chico se contá
E agora que não tem Chico
Que graça é que pode ter
Se Chico foi na jangada...
E a jangada voltou só... a jangada saiu
Com Chico Ferreira e Bento
A jangada voltou só
Com certeza foi lá fora, algum pé de vento
A jangada voltou só...
Bento cantando modas
Muita figura fez
Bento tinha bom peito
E pra cantar não tinha vez

As moça de Jaguaripe
Choraram de fazê dó
Seu Bento foi na jangada
E a jangada voltou só “
Na composição “A Lenda do Abaeté” o cantor e compositor baiano fala de um lugar assombrado:
“No Abaeté tem uma lagoa escura
Arrodeada de areia branca
Ô de areia branca
Ô de areia branca
De manhã cedo
Se uma lavadeira
Vai lavar roupa no Abaeté
Vai se benzendo
Porque diz que ouve
Ouve a zoada
Do batucajé
O pescador
Deixa que seu filhinho
Tome jangada
Faça o que quisé
Mas dá pancada se o seu filhinho brinca
Perto da Lagoa do Abaeté
Do Abaeté
A noite tá que é um dia
Diz alguém olhando a lua
Pela praia as criancinhas
Brincam à luz do luar
O luar prateia tudo
Coqueiral, areia e mar
A gente imagina quanta a lagoa linda é
A lua se enamorando
Nas águas do Abaeté
Credo, Cruz
Te desconjuro
Quem falou de Abaeté
No Abaeté tem uma lagoa escura”
Na composição “Dois de Fevereiro” Caymmi deixa patente sua filiação religiosa ao candomblé baiano:
“Dia dois de fevereiro
Dia de festa no mar
Eu quero ser o primeiro
A saudar Iemanjá
Dia dois de fevereiro
Dia de festa no mar
Eu quero ser o primeiro
A saudar Iemanjá
Escrevi um bilhete a ela Pedindo pra ela me ajudar
Ela então me respondeu
Que eu tivesse paciência de esperar
O presente que eu mandei pra ela
De cravos e rosas vingou
Chegou, chegou, chegou
Afinal que o dia dela chegou
Chegou, chegou, chegou
Afinal que o dia dela chegou”
Nesta composição Caymmi, assim como boa parte do fervoroso povo baiano, demonstra sua confiança na Rainha do mar.
E na composição “Rainha do Mar” Caymmi revela o que pensa e sabe sobre Yemanjá:
“Minha sereia é rainha do mar
Minha sereia é rainha do mar
O canto dela faz admirar
O canto dela faz admirar
Minha sereia é a moça bonita
Minha sereia é a moça bonita
Nas ondas do mar aonde ela habita
Nas ondas do mar aonde ela habita
Ai, tem dó de ver o meu penar
Ai, tem dó de ver o meu penar”
E sempre há um sentimento de rogar um pedido a deidade aquática, mostrando como o povo negro e pobre é carente no campo material, não tendo muito para quem apelar.
Caymmi também falou das baianas na sua obra, como se vê na composição “No tabuleiro da baiana”:
“No tabuleiro da Baiana tem
Vatapá, Carurú, Mungunza tem Ungu pra io io
Se eu pedir você me da
o seu coração,seu amor de ia ia
No coração da Baiana também tem
Sedução, cangerê, ilusão, candonblé
Pra você
Juro por Deus,pelo senhor do bonfin
quero você Baianinha inteirinha pra mim
E depois o que será de nós dois?
Seu amor é tão Fulgás enganador
Tudo já fiz, fui até no cangerê
Pra ser feliz,meus trapinhos juntar com você
E depois vai ser mais uma ilusão
no amor que governa o coração”
Mostrando a preferência do compositor pela gente simples da Bahia.
Caymmi também cantou com perfeição a beleza da mulher negra, na composição “A Preta do Acarajé”:
“Dez horas da noite
Na rua deserta
A preta mercando
Parece um lamento
Ê o abará
Na sua gamela
Tem molho e cheiroso
Pimenta da costa
Tem acarajé
Ô acarajé é cor
Ô la lá io
Vem benzer
Tá quentinho
Todo mundo gosta de acarajé
O trabalho que dá pra fazer que é
Todo mundo gosta de acarajé
Todo mundo gosta de abará
Ninguém quer saber o trabalho que dá
Todo mundo gosta de acarajé
O trabalho que dá pra fazer que é
Todo mundo gosta de acarajé
Todo mundo gosta de abará
Ninguém quer saber o trabalho que dá
Todo mundo gosta de abará
Todo mundo gosta de acarajé
Dez horas da noite
Na rua deserta
Quanto mais distante
Mais triste o lamento
Ê o abará”
A ligação de Caymmi com os cultos afros é realçada nas composições em que fala das comidas votivas dos orixás negros, como em “Vatapá”:
“Quem quiser vatapá, ô
Que procure fazer
Primeiro o fubá
Depois o dendê
Procure uma nêga baiana, ô
Que saiba mexer
Que saiba mexer
Que saiba mexer
Procure uma nêga baiana, ô
Que saiba mexer
Que saiba mexer
Que saiba mexer
Bota castanha de caju
Um bocadinho mais
Pimenta malagueta
Um bocadinho mais
Bota castanha de caju
Um bocadinho mais
Pimenta malagueta
Um bocadinho mais
Amendoim, camarão, rala um coco
Na hora de machucar
Sal com gengibre e cebola, iaiá
Na hora de temperar
Não para de mexer, ô
Que é pra não embolar
Panela no fogo
Não deixa queimar
Com qualquer dez mil réis e uma nêga ô
Se faz um vatapá
Se faz um vatapá
Que bom vatapá
Bota castanha de caju
Um bocadinho mais
Pimenta malagueta
Um bocadinho mais
Bota castanha de caju
Um bocadinho mais
Pimenta malagueta
Um bocadinho mais
Amendoim, camarão, rala um coco
Na hora de machucar
Sal com gengibre e cebola”
Ou em “Acaçá”:
“Acaçá de milho bem-feito
E o jeito?
E o modo dela mercar?
Sorrindo com dentes alvos
A bata caindo do ombro
Caindo pro peito
Acaçá de milho bem-feito
E o jeito?
E o modo dela mercar?
Bem-feito é o acaçá de leite
Bem-feito é o acaçá
Bem-feito é o corpinho dela
Bem-feito como acaçá”
As duas composições a rigor para os desavisados parecem singelas receitas culinárias, quando na verdade revelam todo o fundamento do rito dos orixás.
Caymmi falou do céu na perspectiva da umbanda em “Aruanda” de Geraldo Vandré e Carlos Lyra:
“Vai, vai, vai pra Aruanda
Vem, vem, vem de Luanda
Deixa tudo o que é triste
Vai, vai, vai, vai pra Aruanda
Lá não tem mais tristeza
Vai que tudo é beleza
Ouve essa voz que te chama
Vai, vai, vai”
Caymmi definiu a capital da Bahia em “São Salvador”:
“São Salvador, Bahia de São Salvador
A terra de Nosso Senhor
Pedaço de terra que é meu
São Salvador, Bahia de São Salvador
A terra do branco mulato
A terra do preto doutor
São Salvador, Bahia de São Salvador
A terra do Nosso Senhor
Do Nosso Senhor do Bonfim
Oh Bahia, Bahia cidade de São Salvador
Bahia oh, Bahia, Bahia cidade de São Salvador”
O Senhor do Bonfim citado na música representa o curioso sincretismo do povo baiano pois o povo entra na Igreja católica pensando que está lidando com Cristo, enquanto nos terreiros dão oferendas para o orixá Oxalá, o ancião da cultura iorubá.
E na composição “Oração a Mãe Menininha” Caymmi refere-se a sua filiação ao axè do Gantois:
“Ai! Minha mãe
Minha mãe Menininha
Ai! Minha mãe
Menininha do Gantoise
A estrela mais linda, hein
Tá no gantoise
E o sol mais brilhante, hein
Tá no gantoise
A beleza do mundo, hein
Tá no gantoise
E a mão da doçura, hein
Tá no gantoise
O consolo da gente, ai
Tá no gantoise
E a Oxum mais bonita hein
Tá no gantoise
Olorum quem mandou essa filha de Oxum
Tomar conta da gente e de tudo cuidar
Olorum quem mandou eô ora iê iê ô”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo é um convite para que os leitores conheçam a obra de Dorival Caymmi.Uma obra marcada pelo suor dos pescadores baianos e pelos aromas apetitosos da negras baianas.
Pesquisador e ensaísta