sexta-feira, 22 de junho de 2012

NEGRITUDE E HOMOAFETIVIDADE NO ROMANCE O TRONO DA RAINHA JINGA DE ALBERTO MUSSA

NEGRITUDE E HOMOAFETIVIDADE NO ROMANCE O TRONO DA RAINHA JINGA DE ALBERTO MUSSA Autor: Charles Odevan Xavier O propósito deste ensaio é esmiuçar a construção dos personagens negros no romance O Trono da Rainha Jinga do escritor carioca Alberto Mussa (Rio de Janeiro: Record, 2007.) Assim, o ensaio pretende analisar também o grau de pertencimento à cultura negra por parte de escravos ladinos, boçais, forros e o relacionamento com os chamados brancos. Até que ponto os brancos do romance estão certamente convictos dos valores judaico-cristãos católicos ibéricos ou de que forma esses brancos se misturam (ou se perdem) nos costumes dos pretos. TENTANDO FALAR DO ENREDO... O romance O Trono da Rainha Jinga está dentro de dois gêneros: o policial e o histórico. Embora o autor negue a segunda categoria no posfácio, inegavelmente a obra de Mussa se filia no espírito das tramas históricas. A trama se passa em Angola, Goa e Rio de Janeiro seiscentistas e gira em torno de uma suposta heresia perpetradas por escravos negros, a heresia de Judas. Há uma galeria multifacetada de personagens: Mendo Antunes, o armador e baleeiro lusitano que enricou em terras de Goa e vai para Angola por não se adaptar aos costumes indianos. Lá chega e passa a fazer transações comerciais com a Rainha Jinga, uma africana que o impressiona por falar fluentemente o português. Gonçalo Unhão Diaz, o juiz e ouvidor geral brasileiro, que faz amizade com o baleeiro e divide com ele suas impressões sobre os supostos crimes perpetrados pelo grupo de heréticos escravos. A preconceituosa e prepotente viúva do alferes e ferreiro, que a despeito de odiar os escravos; reconhece que sobrevive às custas das esmolas de um deles: o escravo Cristóvão. Este escravo, por sua vez, tem importância na trama por ser membro da Irmandade (o grupo herético de escravos), por ser apaixonado por sua líder (a sádica escrava Ana) e por cometer desatinos com o próprio corpo em nome desse amor (como furar os olhos e queimar a língua). Outro escravo importante na trama é Inácio. Educado por padres, aparentemente cristão, culto e alfabetizado. No final da trama revelar-se-á como peça chave nas onda de crimes contra senhores brancos. Há também um curioso índio na trama. Ele é herborista e presta serviços para líder da Irmandade. Ele cria com os fármacos da mata as puçangas e o importantíssimo: divumo diazele, um “violento e letal purgante de cujo preparo especialmente me orgulho” p.73 Este veneno terá importância capital na trama, pois a encomenda da líder da Irmandade detonará uma série de crimes: “Ana conhecia a mandioca brava. Acreditei: se os portugueses trazem gente de lá, podem bem levar de cá uma planta que cresce praticamente em qualquer chão. Só estranhei quando me perguntou se eu conseguiria preparar com aquela raiz um veneno em pó, que não alterasse o paladar e a cor dos alimentos, e que tivesse um efeito tão mortal quando o da água que se esgota dela.” pp. 71-72 Há também uma feiticeira açoriana na trama amancebada com um forro velho, aleijado. A importância dela na trama é porque em sua casa onde recebe clientes brancos de várias procedências, ela receberá frades escondidos que vêm em procura de seus vaticínios. Acontecerá um crime com esses frades que é testemunhado por um dos clientes da feiticeira. “Pois eu tinha ido lá, na casa dessa feiticeira. Era uma mulher sibilina, perigosa, que adivinhava o futuro e preparava filtros para os males do amor, da saúde e da fortuna.” p. 25 O ESTILO NARRATIVO O Trono da Rainha Jinga é narrado por múltiplos narradores constituindo-se num romance polifônico. Isso torna a leitura rica e desafiadora, pois se o leitor não estiver atento à mudança de vozes narrativas perderá o fio da meada. O narrador onisciente só aparece em alguns capítulos quando narra as peripécias envolvendo Mendo Antunes. QUAL O PROPÓSITO DA IRMANDADE? Na pág. 49 o escravo Cristóvão explica a origem da Irmandade: “Fui dos primeiros irmãos. No início, éramos apenas três, dando fuga a escravos e roubando viandantes nas estradas. Muito dos que estão nos quilombos foram libertos por nós. Muitas das cartas de alforria adquiridas pelos padres foram pagas com o nosso dinheiro. Mas era uma subversão atormentada, sem plano. Pode-se mesmo dizer que não tínhamos um objetivo. Até o aparecimento de Ana” A HERESIA DE JUDAS O escravo Cristóvão, autor do que passa a ser conhecido nas senzalas como Heresia de Judas, explica o sentido da mesma: “Enquanto a irmandade se reestruturava, eu refletia. E compreendi, com base no seu próprio pensamento, que Ana não chegaria a lugar algum daquela forma; compreendi a verdadeira lição que se ocultava na história de Judas e Cristo. Se alguém quisesse remir a humanidade pela dor, não poderia ter permitido que esta fosse compartilhada por um outro homem. Judas sentiu em relação a Cristo o mesmo que eu, quando ajudei a trucidar aquele miserável.” pp. 50-51 “Foi quando comecei a difundir a verdade que logo ficou conhecida como a heresia de Judas. Essa verdade que passou a ser o assunto das senzalas. Porque basta um sofredor para que o bem geral se faça. Serei eu esse sofredor. Pelo amor de Ana. Ainda que ela me persiga, me expondo a prazeres que não quero suportar.” p. 51 A ATORMENTADA PSICOLOGIA DO FRADE “ADIVINHAÇÃO (gr. (lavxeía; lat. Divinatío; in. Divínation, fr. Divination; ai. Wahrsagung; it. Divinazioné). Profetização do futuro, com base na ordem necessária do mundo. Era admitida pelos estóicos, sendo, aliás, assumida como prova da existência do destino. Crisipo achava que as profecias dos adivinhos não seriam verdadeiras se as coisas todas não fossem dominadas pelo destino (EUSÉBIO, Praep. Ev., IV, 3, 136). Para Plotino, a A. é possibilitada pela ordem global do universo, graças à qual todas as coisas podem ser consideradas sinais das outras. Os astros, por exemplo, são como cartas escritas nos céus, que, mesmo desempenhando outras funções, têm o papel de indicar o futuro {Enn., II, 3, 7). A A. baseada no determinismo astrológico foi admitida pelos filósofos árabes, especialmente por Avicena, e destes passou para alguns aristotélicos do Renascimento, como p. ex. Pomponazzi {De incantationibus,10).” Dicionário de Filosofia/Nicola Abbagnano – 5ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2007. “Aquele que recorrer aos necromantes e aos adivinhos para se prostituir com eles, voltar-me-ei contra esse homem e o exterminarei do meio do seu povo.” Levítico 20, 6 “O homem que se deita com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma abominação; deverão morrer, e o seu sangue cairá sobre eles.” Levítico 20, 13 “ρονευω porneuo 1) prostituir o próprio corpo para a concupiscência de outro 2) estregar-se à relação sexual ilícita 2a) cometer fornicação 3) metáf. ser dado à idolatria, adorar ídolos 3a) deixar-se arrastar por outro à idolatria” “733 αρσενοκοιτης arsenokoites de 730 e 2845; n m 1) alguém que se deita com homem e com mulher, sodomita, homossexual” DICIONÁRIO BÍBLICO STRONG Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de Strong - SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL Na obra chama a atenção a quantidade de brancos católicos que absorvem parte das crenças africanas, como por exemplo os clientes do calundu da feiticeira açoriana (ela mesma uma branca que absorveu a magia negra europeia com ciganaria, judiaria e as religiões tradicionais africanas devido a sua amasia com o forro que a auxilia com pontos riscados).Da qual concluímos preliminarmente que estes brancos católicos ou não entenderam o providencialismo bíblico ou não o aceitam. Mas um dos personagens mais curiosos é o frade carmelita. O frade é cliente da feiticeira açoriana. E por tal hábito ele acaba sendo visto por outro cliente, que o reconhece enquanto frade e este cliente fica horrorizado de ver um homem do clero católico frequentando um lugar como aquele: “Quando a conhecemos (porque fomos juntos eu e minha mulher) desejávamos enriquecer e não apenas deixar de passar fome. Tínhamos uma noção muito precisa do que fosse felicidade, no Rio de Janeiro, para não termos ambição. Por isso suportamos a espera no vestíbulo, abafados, amarfanhados, cercados por toda casta de gente e envolvidos por um bafio nauseabundo, até que o forro nos chamasse. A açoriana, sentada à mesa e coberta de colares e anéis de latão, tinha diante de si apenas um baralho sebento, que manipulava segundo vários métodos, naturalmente no exercício de decifrar sua mensagem.” pp. 25-26. O frade carmelita ao ser reconhecido pelo cliente o suborna com duas patacas, pedindo discrição. Vamos analisar a atormentada psicologia do frade. O frade se atormenta pela relação homossexual com outro frade chamado Francisco vaticinada pela feiticeira Açoriana, o que dá credibilidade ao trabalho dela perante o frade. E também se angustia por não esperar pela providência divina como ensina os códex do Vaticano acabando por frequentar o calundu: “Assim, a temporalidade do mundo, de que me deveria apartar (grifo nosso), me obcecou. E me envolvi com ciganas, cabalistas, astrólogos. Até pecar.” p.93 Vejamos como o frade encara a sua homossexualidade: “Ainda não tinha enfrentado o olhar de ninguém: do prior, dos padres, dos meus companheiros de ordem (especialmente do irmão Francisco, a quem imundicei com a lama do pecado) e sequer dos escravos do convento (de quem nunca cheguei a ter suspeitas). O julgamento unânime dos homens certamente me atribuía alguma espécie de remorso ou vergonha. Talvez nem mesmo Deus houvesse de me compreender.” p. 91 A obra do jornalista João Silvério Trevisan Devassos no paraíso: (a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade) – Ed. revisada e ampliada – 6ª ed. - Rio de Janeiro: Record, 2004. - nos ajuda a entender o motivo da angustiada orientação sexual do frade carmelita. Também a obra historiográfica do antropólogo e militante gay Luís Mott sobre a homossexualidade na África lusófona e no atlântico negro é um guia para compreender os ansiosos e angustiados homossexuais seiscentistas. Como também não podemos esquecer as duras palavras do Levítico no Antigo Testamento em relação aos chamados homoafetivos, que a Bíblia nomeia pelo adjetivo genérico de sodomitas. Assim o frade confessa o gosto sodomita ao abade do convento: “Falei da minha paixão por um prazer do século. Padeço desse mal (grifo nosso) desde antes de prestar meus votos. Os corações vulgares deverão dizer que amei ou amo através da carne. Não chega a ser assim.” p. 92 Ou seja, o frade experimenta o desejo homossexual mas o sataniza, o vê de uma forma pejorativa e depreciativa. Porque como frade ele introjetou a noção de culpa que penaliza os gays no Levítico. E além de gay o Frade comete outro pecado: prostitui-se com necromantes e adivinhos. Sim! Prostitui-se! Eis o pesado verbo bíblico para quem vai num macumbeiro. Vejamos como ele afirma o seu “pecado”: “De início jogar às cartas tinha um sentido meramente lúdico. Fascinavam a expectativa do sucesso e o temor do fracasso. Mas com o envolver do tempo, passei a experimentar, em determinadas ocasiões, a convicção acentuada de estar com sorte – o que se confirmava na maioria das vezes. Por isso, porque aprendi a pressentir tais instantes, não me tornei um perdulário e não dispus da minha fortuna de família mais que o necessário para esse pequeno capricho do mundo. Não sei como começou. Mas quando dei por mim, tinha formada uma noção concreta da previsibilidade do por-vir – que não necessariamente conflitava com o livre-arbítrio. Minha tese encontrava apoio na próprias escrituras: Cristo predissera a traição de seu primeiro apóstolo. Portanto, ao menos certos passos, certos momentos, certos eventos da vida estavam escritos, traçados por uma vontade superior, senão divina.” pp. 92-93 “Porque passei a crer, porque pretendi – de livre e boa vontade – ter o domínio do futuro. Não apenas para conhecê-lo; mas para jogar com ele.” p. 93 Deste modo, vemos um homem tipicamente seiscentista. Não podemos esquecer que o Brasil - a despeito de ser produto da Renascença e do ciclo das navegações comerciais mercantilistas - vive no espírito ideológico da Idade Média. Assim vemos um frade dividido entre o racionalismo, as heresias e o apego à ortodoxia judaico-cristã. Também é digno de nota que na Renascença ainda há a Santa Inquisição e o Santo Ofício pune severamente hereges e sodomitas. E por que seiscentista? Porque com o ciclo das navegações e a descoberta do novo mundo (o continente americano), o contato com mercadorias e ideologias da Índia e China e a escravidão compulsória dos africanos, o mundo ficou confuso, em crise de paradigmas. De repente o medievo teocentrista e judaico-cristão perdeu credibilidade no contato dos viajantes com a feitiçaria africana. Sim! O homem não deveria aceitar passivamente a providência, o destino, o fado. Poderia alterá-lo e modificá-lo com magia e despachos. Assim, o mundo europeu desestabilizou-se. E é nesse espectro do fetichismo africano, que surgem brancos como a feiticeira açoriana que não dispensa os pontos riscados do amante forro ou o frade carmelita que acredita nos seus vaticínios. A cultura africana crê na fatalidade, que o destino do homem está predeterminado e pode ser “lido”. Seja através do opelé ifá, do meridilogun (jogo de búzios), do ngombo (estranho oráculo dos povos bantófones da África meridional). Qualquer método é válido para ler o destino seja com o cauri seja com o obi ou seja com os ossos do ngombo. Porque este povo pressupõe que cada um traz o destino de berço e basta ao babalaô, ao ndoki, ao nganga decifrá-lo. O destino na cultura africana subsaariana de expressão iorubá-nagô é chamado de odu. E cabe ao babalaô olhar o búzio para saber com aquele cliente o que aconteceu no passado com um ancestral semelhante. O Brasil, representando o novo mundo, também tem suas crenças indígenas nativas onde a relação entre os vivos e mortos fazem com que todos sejam meio vivos e meio mortos ao mesmo tempo. Pois há na cultura indígena um intercâmbio quase simbiótico entre o que o vivo faz e o que o seu ancestral morto quer e deseja para ele. É desse mundo confuso seiscentista que surge um frade carmelita como o descrito pelo romancista Alberto Mussa. Se ainda hoje os gays, principalmente aqueles que introjetaram algum valor judaico-cristão dos seus pais, experimentam algum grau de culpa pelos seus hábitos sexuais, imaginem para um gay naquela época. Logo o frade gay e macumbeiro de Alberto Mussa tem total verossimilhança. CONSIDERAÇÕES FINAIS No romance O Trono da Rainha Jinga o escritor carioca Alberto Mussa patenteia sua enorme erudição que concilia etnologia, linguística africana, história colonial com um enredo cativante e final surpreendente. Pesquisador e ensaísta.