segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O CINEMA ALUCINADO DE GLAUBER ROCHA






O CINEMA ALUCINADO DE GLAUBER ROCHA
Charles Odevan Xavier

Para escrever esse estudo da obra de Glauber Rocha, eu li Dicionário Teórico e Critico de Cinema de Jacques Aumont e Michel Marie; O Cinema brasileiro moderno de Ismail Xavier e Brasil em Tempo de Cinema: ensaios sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966 de Jean-Claude Bernardet.

Apesar de falar da obra de Glauber Rocha, na verdade este estudo foca o filme Dragão da Maldade contra o santo guerreiro transmitido recentemente na programação domingueira da TV SENADO, no mês de Agosto de 2011, na chamada Mostra Glauber Rocha.
Não sou um profundo conhecedor da obra de Glauber Rocha. Não vi seu filme de estreia (Barravento de 1962), vi apenas o começo de Deus e Diabo na Terra do Sol de 1964, não vi o comentado Terra em Transe de 1967 - citado com louvor por Caetano Veloso no seu Verdade Tropical e nem vi o ultimo filme A idade da terra de 1980.
Mas como fiquei impactado pelo colorido de Dragão da Maldade, resolvi escrever sobre o cinema de Glauber Rocha a partir deste filme.

Dragão da Maldade e um filme não linear, descontinuo, modernista, brasilianista. Nele um enredo mínimo revela toda a ação focada na invasão de um grupo de camponeses e de cangaceiros a um povoado do sertão nordestino.

O latifundiário do lugar e o delegado local conversam sobre a necessidade de um jagunço para matar Coirama, o líder dos cangaceiros. Contrata-se o pistoleiro Antônio das Mortes (Mauricio do Vale) para fazer o serviço sujo sem chamar a atenção da imprensa e da policia.

Na mise-en-scène do conflito entre o cangaceiro e o pistoleiro, Glauber Rocha cria um tom de farsa e reisado, onde Coirama e Antônio das Mortes duelam com facões recitando cordéis típicos nordestinos metrificados. O que tira o realismo, imprimindo um ar teatral e jogralizado à cena. A cantoria dos camponeses e brincantes de reisado perturba o coronel-latifundiário e no final do duelo Antônio das Mortes esfaqueia o cangaceiro.

Noutra cena, o cangaceiro moribundo é levado para um bar, onde o professor e o padre locais tentam acalmar o moribundo. Nesse bar o professor e o pistoleiro dividem uma cachaça.

O personagem do professor vivido por Othon Bastos é extremamente interessante na diegese do filme. Inicialmente é um intelectual vindo da cidade grande que recebe salario atrasado e se embebeda no bar, com tiradas cínicas e risadas cheias de sarcasmo ao longo das cenas aparenta estar ao lado dos poderosos, como em suas conversas com o corrupto delegado local.

Antônio das Mortes, o pistoleiro, também é um personagem forte e marcante. Interpretado pelo excelente Mauricio do Vale, o pistoleiro estranha ainda existir cangaceiros para matar e próximo do final do filme, ao ver uma figurante do reisado de camponeses, lembra de um antigo amor.

O figurante, que ele chama de santa, mas que a meu ver esta vestida de orixá, dialoga com Antônio das Mortes e este pede perdão pela morte dos ancestrais da "santa".

Este se sentindo culpado vai à igreja, conversa com o padre e pede para que este chame o delegado.

O delegado vem e o pistoleiro pede para que o delegado convença ao coronel-latifundiário de ceder parte de suas terras para o grupo de camponeses.
Nesse momento, o espectador começa a perceber que o pistoleiro mudou de lado: passou para o lado dos pobres, dos vencidos da Historia.

O delegado, que tem um caso com a mulher do latifundiário, tenta convencer o pistoleiro para este matar o latifundiário e como recompensa lhe dará uma fazendinha longe dali.

O delegado vai ate a casa do latifundiário. Trama a morte do mesmo com a esposa deste. Mas não tem coragem de executar o coronel-latifundiário.

Outras cenas de conversa entre o pistoleiro e a "santa"...

Para não ficar apenas ao nível do enredo, cabe agora analisar os elementos fílmicos utilizados por Glauber Rocha neste filme.

O estilo glauberiano já foi chamado de estética da fome e em parte ha razão nesta rotulação. No Dragão da Maldade e no Deus e o Diabo na Terra do Sol - pelo menos ate onde puder ver, já que a copia que a TV SENADO exibiu, tinha terríveis problemas no áudio, por isso não assisti ao segundo todo - o universo do autor de Terra em Transe comparece com paisagens áridas do sertão nordestino, caatinga, camponeses, cangaceiros, animais esquálidos pastando e tudo o que se pode representar como a zona rural da América Latina e do Terceiro Mundo.

Deus e o Diabo na Terra do Sol pareceu-me um filme muito duro de ver: preto e branco, longos silêncios... E com certeza o áudio prejudicou a minha audiência. Já Dragão da Maldade, colorido e com um ótimo áudio, revelou um Glauber Rocha mais seguro como cineasta, por se tratar de seu quarto filme.

A utilização da musica no filme e surpreendente. Chamou-me atenção a maneira como o folclore baiano aparece no filme. Os camponeses cantando seus reisados e o professor rindo alucinado foi um contraponto plasticamente bem resolvido.

Nas cenas em que o corpo do delegado e arrastado pela catinga, Glauber escolheu canto lírico atonal, criando uma atmosfera perturbadora.

Também gosto das pontuações em que cantorias aparecem na trilha-sonora, principalmente no plano aberto em que os jagunços afilhados do latifundiário o carregam junto com a esposa numa tabua, revelando a subserviência característica dos homens pobres no sertão nordestino.

Os personagens não são planos. O professor do cinismo inicial acaba aderindo à militância camponesa. O pistoleiro inicial vira o defensor dos camponeses. Até o padre, que aparece ao longo do filme subserviente e bajulador do latifundiário e ao poder local do povoado, no final do filme adere ao "bandoleirismo revolucionário".

A despeito de Bernardet ter chamado o ciclo do cinema do cangaço de versão brasileira do western americano, o filme de Glauber Rocha exibe uma violência surreal: o cangaceiro, por exemplo, esfaqueado no começo do filme, não morre e aparece monologando até quase o final, onde finalmente "morre"; nos tiroteios entre os jagunços do coronel-latifundiário e o professor e o Antônio das Mortes, embora os jagunços estejam em maioria, todos morrem e o professor e o pistoleiro não levam nenhum tiro. Este ar farsesco, cria no espectador um clima de irracionalismo e inverossimilhança.

Até aquela cena já relatada do duelo entre Coirama e Antônio das Mortes, o gênero western e subvertido, pois no faroeste americano jamais dois duelantes iriam disputar a faca, cantando versos de cordel.

Glauber Rocha bebeu no cordel nordestino, nos sambas-de-roda, nos reisados, no atonalismo, no dodecafonismo, viu Eisenstein, Bunuel, Rosselini, Godard, leu Marx para produzir o seu cinema controvertido e complexo. E eu percebi acentos glauberianos no Corisco e Dada do cearense Rosemberg Cariri.

Este breve estudo não pretende esgotar o Dragão da Maldade, mas ser um convite ao leitor para ver esta obra criativa e seminal. Talvez na internet o leitor consiga dar o download do filme e se não consegui-lo inteiro, talvez consiga ver fragmentos no Youtube.com.

Pesquisador e videomaker.