quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

BÍBLIA E HOMOAFETIVIDADE


BÍBLIA E HOMOAFETIVIDADE

Charles Odevan Xavier

Este estudo tem como propósito: investigar a forma pela qual a homossexualidade (ou como preferem agora os movimentos de emancipação homossexual: homoafetividade) é construída na Bíblia Sagrada. Ciente da delicadeza do assunto, partimos do que o historiador Mircea Eliade ( "O Sagrado e o Profano: a essência das religiões" - São Paulo: Martins Fontes, s/d.) definiu como ciência das religiões comparadas´; que como o nome indica, consiste em analisar "os elementos comuns às diversas religiões a fim de decifrar-lhes as leis de evolução". Também nos baseamos nas reflexões de Karen Armstrong ("Uma história de Deus: quatro milênios de busca do judaísmo, cristianismo e islamismo " - São Paulo: Cia. das Letras, 1994).

Para garantir o máximo de isenção, resolvemos utilizar como fonte de consulta uma Bíblia católica ( Bíblia Sagrada. 98 edição. São Paulo: Editora Ave Maria) e uma Bíblia evangélica ( Dios Habla Hoy: La versión popular - 2 edición. México: Sociedades Bíblicas Unidas, 1991).

DO MÉTODO UTILIZADO

A primeira constatação que fizemos ao examinar o índice remissivo das duas Bíblias, é a da inexistência da palavra homossexualidade. O que nos leva a entender como: indício de que o assunto é tabu nos dois credos religiosos.

Entretanto, na Bíblia evangélica encontramos a expressão "Sodoma y Gomorra", o que nos leva a supor que os evangélicos dão uma atenção ao que ocorria nessas duas cidades de práticas tão controvertidas.

Assim, baseados nas referências da Bíblia evangélica, adotamos o caminho metodológico de comparar e confrontar os capítulos e versículos arrolados com a Bíblia católica, que sobre o assunto nada indica claramente.

AUTORIA NA BÍBLIA

Como iremos examinar textos, é de suma importância saber quem os redigiu. Dessa forma, devemos buscar saber quem foi o autor do livro examinado, pois isso ajudará a entender não só o tom emocional em que o texto foi enunciado, mas também a intenção enunciativa do autor.

Entretanto, aqui surge um problema ou vários. O primeiro deles é que, diferentemente de um texto contemporâneo, é muito difícil saber com exatidão a autoria de textos da antigüidade. Ou seja, enquanto hoje podemos claramente saber quem escreveu uma determinada obra - até pelo fato jurídico de que há um contrato estabelecido entre autor e editora; o mesmo não acontece com obras antigas em que os dados objetivos do autor (nome completo, endereço, profissão, nacionalidade etc.) se perderam no tempo.

Aliás, vejamos o que diz a Bíblia católica sobre essa problemática em sua introdução - não por acaso, sem autoria atribuída:

"A Bíblia completa contém 73 escritos (71, 72 - segundo outras maneiras de contar), obras de numerosos autores, tendo cada um deles características próprias.
Os títulos desses livros lembram por vezes o nome de seus autores [ Ex. Provérbios de Salomão, Salmos de Davi ], outras vezes o nome dos seus destinatários, ou ainda os assuntos que neles são tratados" p.15

E a constatação mais importante:

"É - nos desconhecido o nome de muito desses autores; alguns escritos são produto de uma colaboração ou constituem uma coleção de textos antigos compilados posteriormente. Os autores bíblicos viveram em lugares e ambientes muito diversos: cada um deles a imprimir na sua obra traços muito característicos de sua personalidade.
Mas como todos eles escreveram sob inspiração do Espírito Santo, é Deus mesmo quem deve ter sido como o autor primário de toda a Bíblia” p.15

Ou seja, a própria equipe que elaborou esta introdução que acabamos de mostrar – no caso os Monges de Maredsous da Bélgica e traduzido pelo Centro Católico, cuja coordenação é do Frei João José Pereira de Castro, º F. M. – reconhece a dificuldade de precisar a questão da autora na Bíblia Sagrada, como se conclui pela utilização da locução verbal “deve ter sido” no modo subjuntivo, que indica referência a fatos incertos ( Evanildo Bechara. Moderna Gramática Portuguesa – 37 ed. Rio de Janeiro : Lucerna, 2001).

Outro problema, que se intui da explicação fornecida pela equipe citada, é a da natureza da autoria na Bíblia Sagrada; pois diferentemente do autor de um romance, o autor bíblico, supõe-se, não é como um romancista que escreve ficções que brotam de seu intelecto. Mas é uma espécie de testemunha ocular, de anotador ou coletor de relatos. Assim, o texto produzido por um autor bíblico não foi inventado por ele, foi revelado; ou seja, é uma hierofania. Deste modo, somos obrigados a considerar a possibilidade da existência do elemento sobrenatural ou fantástico na gênese da escritura bíblica. O texto bíblico, em suma, pressupõe que o que está sendo narrado realmente aconteceu, ainda que viole as leis naturais mais básicas (por exemplo, o Mar Vermelho se abrindo em dois, desafiando a lei da gravidade). Muitos leitores, especialmente os neo- pentecostais, têm uma enorme dificuldade em conceberem os relatos bíblicos como alegorias, geralmente eles vêem tudo como literal.

O DEUS BÍBLICO

Outra fonte de problemas é a natureza do Deus descrito pelos autores bíblicos. Diferentemente, das concepções hindu e africana-iorubana que supõem um ser supremo generoso mas distante do homem, a concepção judaico-cristã revela a existência de um ser supremo que aparece como personagem ativo do texto que inspira. Assim, o Jeová não só dita a Moisés suas leis, como participa efetivamente da trama.

MOISÉS: AUTOR DO PENTATEUCO?

A tradição considera Moisés como autor do Pentateuco, sem afirmar entretanto, que ele o tenha composto inteiramente. A Ciência Bíblica admite que o fundo antigo de origem mosaica recebeu no decurso dos séculos da história dos hebreus diversos acréscimos e modificações, particularmente nos textos legislativos do Levítico e do Deuteronômio.

SODOMA E GOMORRA

Depois deste longo preâmbulo, decidimos começar a análise propriamente dita da questão da homossexualidade na Bíblia, através da imagem formada sobre as cidades de Sodoma e Gomorra:

“Ora, os habitantes de Sodoma eram perversos, e grandes pecadores diante do senhor” GEN, 13,13

Sabe-se que Moisés ( o provável autor de maior parte do Gênese) não presenciou a destruição de Sodoma e Gomorra relatada no capítulo 19. Até porque, segundo a equipe católica, o Gênese não se trata de um verdadeiro livro de história nem tampouco de um manual de história natural com a finalidade de expor as origens do mundo e da humanidade. Moisés teve em vista apresentar um ensinamento religioso. Pois sabe-se que um poeta não escreve como um cientista e que toma muitas liberdades de linguagem (imagens, comparações, amplificações) as quais um historiador atual não se permitiria. Ninguém ignora, igualmente, que as tradições populares, em geral imprecisas, sempre embelezaram os heróis e ensombrearam os inimigos.

Ou seja, Moisés relata o que colheu de depoimentos orais dos mais velhos ou o que Jeová lhe ditou.

Muitos leitores da Bíblia ( especialmente os adeptos neo-pentecostais) imaginam que, na hora em que o ser supremo disse o “Fiat Lux”, já havia um escritor anotando. O que seria logicamente impossível, já que neste momento o ser humano ainda não tinha sido criado.

Muitos teóricos têm gasto papel e tinta com especulações filológicas acerca do sentido do verbo ´conhecer´ no contexto bíblico. Para não entrarmos na armadilha dessa argumentação, resolvemos sair do capítulo 19 do Gênese – em que os habitantes de Sodoma vão até a casa de Lot para conversar com os anjos e este oferece suas filhas virgens no lugar deles – e pularmos para as prescrições do Levítico.

A HOMOSSEXUALIDADE NO LEVÍTICO

O Levítico é um esboço de código civil do povo hebreu. Nele podemos encontrar regras que vão desde a proibição do uso do fermento em bolos à proibição do consumo de carne de coelho; da ilicitude de se comer peixe de couro ao consumo de cerveja na reunião dos anciãos da tribo.

Em relação ao sexo, há diversos exemplos do que consideravam abominação naquele momento. É infame o homem deitar com outro homem; ter intercurso sexual com animais; assim como é interdito o filho e a filha verem os pais nus ou o sogro vê a nudez da nora ou o marido tocar na esposa menstruada etc.

O que podemos interpretar destes vetos relatados?

Poucos são os estudiosos que se utilizam da História e da Geografia para se efetuar a exegese da Bíblia. Muitos se prendem a analisar estes preceitos como um fim em si mesmo, sem compará-los com os costumes de outros povos.

A NATUREZA DO POVO JUDEU

Neste ínterim, poucos foram os que questionaram a própria natureza do povo que enunciou aqueles preceitos do Levítico: o povo hebreu.

Cabe perguntar, nesta altura dos acontecimentos, o que é povo? O que significa a expressão ´povo hebreu´? O que implica o conceito de nação, qualquer que seja ela (nação hebréia, japonesa, brasileira etc.)?

O Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa ( Rio de Janeiro: Objetiva, 2001) resolve todos estes enigmas. 1. Nação é comunidade com laços históricos, lingüísticos etc. sob governo único dentro de um território. 2. Grupo reunido por crenças, origens, costumes.

Assim, aplicando à definição do dicionário ao povo hebreu, judeu ou judeano (´aquele que é natural de Judá); concluíremos que o que faz a unidade desse povo é uma história comum narrada em um conjunto de livros (no caso, a Bíblia Sagrada); uma língua comum (o hebraico) e um território comum (a Palestina).

Vejamos o que diz Jeová sobre isso:

“Se obedecerdes à minha voz e guardardes a minha aliança, sereis entre todos os povos, o meu povo particular...sereis uma nação consagrada” ÊX19, 5-6

Todo esse novo preâmbulo nos faz pensar que, coube a Moisés, o papel de juntar esse povo (inicialmente pequeno) que foi independente apenas por cinqüenta anos e que passou a maior parte do tempo sendo submetido a todos os senhores do oriente médio. Um povo que foi na origem nômade e politeísta; que teve contato com filisteus, egípcios, babilônicos, hititas, persas, macedônios e romanos, contaminando –se com seus costumes, línguas e valores. Desta forma, Moisés vendo a predisposição à dispersão do seu povo (que chegou a se dividir em doze tribos) teve de ter pulso forte e usar um vocabulário mais firme e intransigente.

Moisés viu-se, segundo o que narra a escritura, peregrinando durante quarenta anos por um deserto inóspito; tendo que garantir, ainda que pela espada, uma unidade política, econômica , territorial e servindo de conciliador entre um Deus ciumento e um povo indolente. Ou seja, uma tarefa muito exigente para um homem de 80 anos.

A homossexualidade, associada às práticas dos sacerdotes egípcios e dos governantes romanos, parecia a Moisés um intolerável desperdício de tempo, em se tratando de um povo pequeno e de baixa auto-estima. Portanto, é natural que esse octogenário simples e rústico pastor de ovelhas, muitas vezes hesitante com a própria missão que não escolheu, como se deduz das passagens em que Jeová se irrita com a timidez de Moisés.

Assim, concluímos que o veto bíblico à homossexualidade nada teve de pessoal ou subjetivo. Foi apenas uma estratégia política, militar e demográfica para garantir a coesão e, principalmente, a expansão daquele povo recém-integrado.

Entendemos que o rosário de perseguições, humilhações, espólio de seus bens, propriedades e mortes que sofreram os irmãos homossexuais ao longo da história do cristianismo, se deve a uma ignorância e intransigência atávica de líderes religiosos sectários, movidos muitas vezes por interesses escusos e nada fraternos.

Condenar os homossexuais a morte simbólica – como recentemente fez o Papa em sua encíclica ou a uma miséria afetiva e sexual como fazem os pretensos programas de “cura homossexual” das igrejas neo-pentecostais, é sinal de crueldade e de desconhecimento da onipotência, onisciência, onipresença e absoluta misericórdia do Criador que fez a estrela, a pedra, a planta, o verme, o cordeiro e o homem.

Mestrando em Letras pela UFC

Um comentário:

Unknown disse...

Linda explanação.