domingo, 27 de fevereiro de 2011

O PROBLEMA QUEER, O FIM DO SISTEMA DE GÊNEROS, SEXUALIDADES


O PROBLEMA QUEER, O FIM DO SISTEMA DE GÊNEROS, SEXUALIDADES

Charles Odevan Xavier

Este estudo é muito ambicioso começando pelo próprio título. E para tal me amparei numa bibliografia que inclui o estudo Teses pelo fim do sistema de gênero da ativista cearense Ilana (publicada na Revista Contraacorrente Nº. 10 Maio-Agosto de 2000), no zine Incógnito: pós-identidade queer do ativista paraibano Lucas Altamar e também no livro Preconceito contra homossexualidades: a hierarquia da invisibilidade de Marco Aurélio Máximo Prado e Frederico Viana Machado publicado pela Editora Cortez em 2008.

Mas é lógico que para falar de queers, gênero, sexualidades; a bibliografia não pode só se resumir aos citados.Também vale à pena ler a obra ensaística de João Silvério Trevisan (como também sua excelente obra ficcional); assim como, valeria ver os contos, romances de autores como Silviano Santiago, Caio Fernando Abreu e João Gilberto Noll.

Outro problema desse meu estudo é que ele tem como destinatário principal a militância anarquista ou libertária que lê meu Blog. E esse público não gosta muito do academicismo ou intelectualismo pedante..Por outro lado, não terei culpa se o texto trair aqui e ali um ou outro academicismo, que pode ser interpretado como beletrismo preciosista ou pedantismo esnobe.Minha intenção foi a de fazer um texto mais claro e acessível possível, um texto militante sem dúvida. Espero ter conseguido.

AS TESES PELO FIM DO SISTEMA DE GÊNEROS

“Toda a vida humana foi em nosso tempo, submetida ao domínio da economia através do desenvolvimento histórico do sistema de produção de valores.”
Ilana


O texto Teses pelo fim do sistema de gêneros é um texto de 2000. E como tal reflete aquele momento de efervescência em torno da agenda dos chamados movimentos de Antiglobalização, da AGP(Aliança Global dos Povos) e das agitações dos manifestantes contra a reunião da OMC em Seattle em 1999.

Ilana, na revista, apresenta o texto como uma primeira versão de um conjunto de teses apresentadas como contribuição ao debate, ao Seminário Internacional Sobre Gênero em San Cristobal de las Casas, Chiapas, México, em Maio/Junho de 2000.

O texto é longo, denso e apresenta em 16 longas teses um vigor crítico e cáustico impressionante. Talvez o leitor encontre uma versão virtual na Internet, basta colocar o título nos buscadores da internet que talvez recupere alguma coisa.

Inclusão ou exclusão do mercado? Trata-se assim de uma completa economização da vida, da redução da vida à economia. Eis a constatação inicial de Ilana.

“O mercado é a supressão radical do indivíduo”.Isso significa que enquanto sou trabalhador, proprietário – ou negativamente, uma desempregada, uma despossuída – (é sempre desse modo que um indivíduo existe para e no mercado), não sou um indivíduo, ou seja, não sou alguém dotado de existência, sentimentos, aspirações, desejos próprios e únicos, mas sou precisamente um mais de uma espécie, ou seja, um trabalhador, um proprietário, um desempregado.

“A negação da individualidade que se realiza sob o domínio do mercado se apresenta, contraditoriamente, como aparição do indivíduo.”

“È assim que os movimentos sociais que manifestam a explosão da reivindicação da diferença são continuamente integrados na lógica mercantil: mulheres – trabalhadoras, consumidoras, nicho de mercado que se abre com a explosão da luta em torno do direito feminino; GLS – consumidores, nicho de mercado, e mercado potencialmente abundante, dizem os analistas, nicho de alta rentabilidade, de alta expectativa de consumo. Negros – consumidores, nicho de mercado: “Negro classe A também consome”. O “politicamente correto” é a expressão mais visível, na esfera dos direitos, da tentativa de captura pela lógica mercantil, da explosão da diferença; todas as formas discriminação são passíveis da intervenção de um advogado litigante em busca de indenizações.”

Ilana fala na estetização que “transforma movimentos autônomos de reivindicação do direito à diferença em ‘nichos de mercado’ é apenas a sua face mais visível: “um novo modo de ser mulher”, “Negro é lindo”...assim, os mass media, incorporam cotidianamente, os apelos da diferença como apelos de consumo”.

Ilana fala do que entende por inclusão social: “trata-se da inclusão social do diferente pelo e no mercado. Redução, portanto, da diferença, à identidade abstrata de ‘consumidores’.

Ilana é radical e propõe a destruição do Mercado: “Destruir o mercado é condição sine qua da constituição da individualidade, da aparição real das diferenças negadas pela universalização da forma mercadoria. Se não nos contentamos em ser portadores (ou em nossa maioria, nas condições do capitalismo atual, não portadores) de mercadorias, é preciso pôr no lugar das relações mediadas pelo dinheiro, relações diretas entre os indivíduos. Sem compreender a centralidade da necessidade da destruição do mercado, não é possível sequer falar de vida: estaremos sempre na esfera do simulacro, na esfera da pura representação da vida.”

Na tese 9, llana define o que entende por Gênero: “O gênero é uma invenção histórica da humanidade, um modo de identidade, de supressão da diferença que se origina numa dada diferença/identidade naturais, a amplifica e institui a partir dela todo um sistema hierárquico e classificatório.

Ilana é contra a naturalização do Gênero: “O gênero não é, pois, um dado natural, mas um modo historicamente determinado de classificar os indivíduos da espécie humana com base numa dada identidade/diferença biológicas, apenas uma entre tantas possíveis.”.

Ilana questiona o papel da tradição: “Se a tradição, se a herança patriarcal é já fundamento de tal naturalização do sistema de gêneros, a introdução das relações mercantis, mais que reforçar a naturalização aprofunda, amplia e universaliza tal naturalização.”

Ilana dimensiona o papel da hierarquização: “O Gênero – como todo sistema classificatório – implicou, historicamente, uma classificação, uma normatização e uma hierarquização. È a partir da identidade de gênero que se instituem as representações próprias à ‘natureza’ do Masculino e do Feminino: o macho caçador – provedor, a fêmea reprodutora; o masculino, ativo e o feminino, receptivo.”

Algo permanece: “uma permanência central: a hierarquização dos papéis e o lugar da subalternidade do Feminino.”.

A ativista cearense dimensiona o patriarcado: “Foi do ponto de vista de sua gênese histórica, o patriarcado que inaugurou o poder nas relações humanas. A dominação de gênero é, assim, historicamente, fundadora – anterior, portanto à dominação étnica, à dominação de classe.”.

E Ilana recomenda que na negação do sistema capitalista: “Se a negação do sistema, como foi dito acima, encontra o seu lugar privilegiado, quanto ao sistema de gêneros, nas mulheres e homossexuais, pela sua condição de subalternidade, que seja no combate à subalternidade submetendo ao combate mesmo a idéia de gênero enquanto tal, ou seja, que o combate à subalternidade do feminino e à exclusão possa ir à raiz do problema compreendendo que a crítica à situação de opressão feminina ou contra a homofobia só se realiza, na radicalidade, como crítica ao sistema de gêneros em sua totalidade, ou seja, como crítica ao sistema enquanto tal.”.

Em tom ligeiramente diferente é o texto do ativista paraibano Lucas Altamar Incógnito: pós-identidade queer. Lucas começa o texto com bom humor e ironia dizendo não achar agradável fazer um “dossiê de estudos queer”. E se assume como um queer falando da perspectiva de dentro, enquanto os acadêmicos falam do queer bacharelisticamente.

Diferente de Ilana, que por ser professora universitária, imprime um tom de seriedade ao texto, Lucas tem um estilo que comporta digressões pessoais e narrativas, uso de gíria juvenil, entre outros recursos estilísticos.

Tanto que diz ser seu estudo “uma produção marginal queer”.

MAS O QUE DIABO È QUEER MESMO?

“Paradoxalmente, admitimos mais uma vez que a pós-identidade queer exprime uma recusa em levar a sério as identidades, que há um século, serviriam para designar e mais frequentemente que outra coisa, em ostracizar os indivíduos em razão de seu sexo, de seu gênero ou de suas diferenças eróticas”.

Lucas Altamar

Segundo as pesquisas filológicas que Lucas fez, Queer (kui’r) vem de uma etimologia confusa que tanto registra o termo literal “bizarro”, mas que pode ser também mas atualmente entendido como “original, excêntrico, singular, raro, infrequente”. Pelo que entendi da explicação de Lucas Altamar, o termo vem do coloquial inglês, seria a gíria mais próxima de “estranho” em português, parecendo ser a superposição do significado da palavra queen “rainha” Assim o significado desta confusa gíria seria usado para fazer alusão a um ser masculino bastante efeminado, pois este seria ao mesmo tempo uma rainha e algo masculinamente excêntrico.

Em sua pesquisa, o ativista paraibano diz que o termo foi variando de época para época e de lugar para lugar.

A HISTÓRIA DO QUEER

Enquanto Ilana centra sua munição discursiva no Mercado, Lucas vê o Estado como inimigo máximo.E vê o queer como uma movimentação que surge da necessidade de um libertação dos separatistas e excludentes reivindicações dos movimentos que anteriormente tinha o status de oprimidos e que, na sua avaliação, acabaram sendo absorvidos pelo Estado.

Lucas entende identidade como “contíguo de caracteres próprios e exclusivos de determinada pessoa. Este conceito, entretanto, está ligado a atividades da pessoa, à sua biografia, ao amanhã, sonhos, mitos, características de originalidade e outras características relativas ao sujeito.”

Segundo o autor do CD Verborréia, o movimento gay identitário hoje gosta datar seu ponto de início a partir do final dos anos sessenta, e, em particular é claro, dos motins de Stonewall em 1969.

QUAL A PROPOSTA DE LUCAS ALTAMAR?

“Nós queers chamamos a uma segunda revolução sexual, mas, uma liberação que transformaria mesmo o modo de pensar a sexualidade e de compor com ela, e assim compreender sobre os planos social e político”.

Em suma, o “queer compreende, portanto, rejeitar diretamente as identidades dicotômicas homem/mulher, masculino/feminino, hetero/homo.”.

O autor se reconhece tributário do legado do movimento LGBT e feminista, mas pretende ser mais radical.

Lucas diz que feministas, lésbicas e gays ortodoxos não se cansam de criticar a perspectiva queer, “em razão de sua vontade reunida que terminaria por minimizar ou apagar, acreditam eles, a especificidade de uns e outros.”

“Não exigimos que cada um negue seus pertences, mas antes que percebam seu caráter contingente, arbitrário e político”.

“Nossa vontade é de emancipação e até de subversão em matéria de sexualidade”


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisando os dois autores, Ilana e Lucas Altamar, perceberemos que dois estilos de apreensão da realidade se antagonizam em alguns momentos e enquanto em outros são complementares.

Ilana, professora de Filosofia e leitora da crítica da economia política de Marx, referencia sua tese do fim do sistema de gêneros, dentro do esquema conceitual da teoria do valor e do fetichismo da mercadoria.

Lucas Altamar, poeta multimídia e ativista anarco-punk queer, procura destruir a noção de movimentos identitários a partir de sua vivência contracultural, respalda sua crítica dentro das lides do anarquismo contemporâneo.

Eu vejo um problema na tese Queer. Trata-se de uma crítica aos movimentos identitários – negro, feminista, LGBT, que propõe, no final das contas, outro movimento identitário: o queer. Ou seja, eu não posso ser homem, ser mulher, ser homo, ser hetero, ser bi, mas posso ser queer.Então o que parece a rigor ser uma tentativa de livrar o ser humano de etiquetas ou gavetas classificatórias, acaba criando uma nova gaveta classificatória: o queer.

Mas eu posso estar equivocado e talvez não tenha entendido o queer em toda sua potência ou latência revolucionária. Um outro texto de outro zineiro, ativista e realizador audiovisual, Rui, já acrescenta mais dados à questão; utilizando-se de uma categoria teórica que eu não conhecia – heteronormatização.

Parece que a questão queer embora tenha começado no underground da contracultura homoafetiva americana na década de 60, pode ainda suscitar várias interpretações divergentes ou convergentes.

E caso o leitor se interesse, no site de downloads www.4shared.com há uma versão eletrônica do texto de Lucas Altamar.


Ensaísta e pesquisador.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

FIGURAÇÃO E IDENTIDADES PÓS-MODERNAS NO "ESTORVO" DE CHICO BUARQUE



FIGURAÇÃO E IDENTIDADES PÓS-MODERNAS NO "ESTORVO" DE CHICO BUARQUE

Charles Odevan Xavier

A figuração ou representação artísitca é uma forma de apreensão da realidade.E toda apreensão pressupõe intelecção, seleção ou redução do material capturado no real que circunda o artista.

Figurar é recortar um estrato da realidade e traduzi-lo em signo.

Muitos foram as concepções de representação artística na história da humanidade.

Para Sócrates, a arte idealizaria o objeto representado; enquanto para o seu discípulo Platão, a arte simularia o objeto, simularia o real.

Aristóteles, dissonante de ambos, dirá que a Arte nem duplica e nem copia o real, o objeto.Ela procura o essencial.Não é, portanto nem completamente verdadeira nem cabal ilusão.Ela busca o verossímel.

Na Renascença, com a apoteose matemática de Giordano Bruno e Galileu Galilei, Leonardo da Vinci entenderá a representação artística como meio de analisar a Natureza e de traduzi-la e linguagem matemática.Deste modo, a arte perde o caráter servil que tinha na Idade Média e passa a ter um 'status' paralelo à Ciência e à Filosofia.Assim, a Pintura ganha uma dignidade teórica.

Diderot verá na Arte simultaneamente uma reprodução de fatos comuns com a escolha dos excepcionais e os traços exteriores da Natureza com aqueles que a fantasia inventa.

Segundo Diderot, enquanto que na Ciência, a verdade é sempre geral, reduzindo a realidade a determinadas formas abstratas, nas quais se dissolvem os aspectos singularews dos fenômenos; na Arte,por sua vez, há predominância tanto do individual como o do sensível.Diante de uma representação artística não nos interessa saber se o objeto representado existe ou não, mas se o artista, repeitando as leis da Natureza, o tornou possível.

A partir de Kant, em vez de se especular acerca da natureza das coisas, dos fins morais da conduta e da essência do Belo, ou seja, de se buscar a ontologia das coisas; o estudioso deve esquecer Deus, finalidade e contemplar os objetos independente de sua existência ou não.Deste modo, a experiência estética, possui valor autônomo, independendo de qualquer finalidade exterior; é um fim em si mesma.

Para Imanuell Kant, a representação artistica sugere e veicula o real.

Em Schiller, a representação artística enfeita e configura o objeto, o real, o mundo. Ou seja, o jogo estético é um ornamento, não está na esfera das necessidades naturais da vida e independe dos interesses práticos.

Para Hegel, a arte pertence juntamene com a Religião e a Filosofia, ao domínio do Espírito Absoluto.

A partir do voluntarismo de Schompenhauer e Nietzsche, a premissa mimética da Arte e seu compromisso com a Razão será dinamitada por uma suspeita contra o totalitarismo da racionalidade ocidental.Assim, somos levados ao lado sombrio e irracional da Moderniadade.

Nietzsche criará dois impulsos para a apreensão da realiade: o dionisíaco e o apolíneo. O primeiro descrito como a inclinação do ser humando para o êxtase, a embriaguez, o transbordamento emocional e o segundo descrito como a inclinação à contemplação e sobriedade.

Henri Bergson a partir da trilha aberta por Schompenhauer e Nietzsche, fará uma analogia entre o processo de conhecimento e da criação artística, pois ambos revelam a capacidade inerente do homem organizar a sua experiência por meio de símbolos, que são ao mesmo tempo, formas de sentir e conceber.

A expressão artística, segundo Benedetto Croce, não existe sem que os conteúdos de consciência, os estados sentimentais ou emotivos experimentados, as vivências, enfim, se concretizem numa forma, termo final do processo de criação, quando as instuições convertem-se em imagens.

Depois desse preâmbulo, começamos a indagar sobre o modo de figuração pós-moderno e somos levados à década de 90 intuída na diegese de "Estorvo" de Chico Buarque.

Se a figuração da realidade assume matizes sombrios a partir do pessimismo schompenhaueriano e do niilismo nietzschiano, como se produto de uma ressaca dos anos de apologia à tecnociência e à racionalidade intrumentalizante do ser humano pelos pensadores iluministas e seus discípulos positivistas; cabe indagar se há alguma diferença entre a figuração moderna e figuração pós-moderna da realidade.

Quem figura tmabém se revela e se pronuncia no que figurou, assim, perguntamos também pela natureza, pela identidade do sujeito pós-moderno.

Vejamos as marcas pós-modernas descritas pelos estudiosos: fragmentação, superficialidade, perda da idéia de identidade una e estável, como resultado do deslocamento da subjetividade, resultando na descrença às metanarrativas e à unicidade subjetiva (Hall, in: Identidades culturais na Pós-modernidade).

Narrado em primeira pessoa, "Estorvo" revela a história de um indivíduo sem nome, sem direção, sem propósito e sem utopia numa cidade grande não-nomeada, ocorrida provalvelmente ans décadas de 80 e 90.

O livro é uma série de narrações descontínuas, desterritorializadas e circulares desse personagem amoral, frívolo e superficial sem demarcações claras de espaço e tempo, que perambula a esmo por uma cidade, movido apenas por instintos primários e com vínculos pessoais esgarçados.

O aleatório sempre presente no romance dá uma configuração onírica, perto do pesadelo à obra:

"Vou regulando a vista, e começo a achar que conheço aquele rosto de um tempo distante e ocnfuso. Ou senão cheguei dormindo ao olho mágio, e conheço aquele rosto de quando ele ainda pertencia ao sonho" p.11

A sensorialidade alucinada cria uma atmosfera nauseante:

"Recuo cautelosamente, andando no apartamento como dentro de água" p.12

A influência intersemiótica de outros códigos de linguagem levando a estetização do real:

"Assim ele me viu chegar, grudar o olho no buraco e tenta decifrá-lo, me viu fugir em câmera lenta" p.12

"para refrescar os ambientes, volto à sala com tonturas, e tenho a impressão de que ela está invertida" p.47

"(...)porém, mais tarde penduramos por toda a parte cortinas brancas, pretas, azuis, vermelhas e amarelas, substituindo o horizonte por um enorme painel abstrato." p.15

"Eu sempre achei que aquela arquitetura premiada preferia habitar outro espaço" p.15

"Fixo o olhar no muro, ouço a bola que pipoca no piso sintético(...) a voz do meu cunhado cada vez mais remota, e parece que estou sendo alçado aos poucos, como se se minha cadeira estivesse numa grua." p.116

"No meio do quarto, a cama de casal me apareceu como uma instalação insensata" p.59

Em "Estorvo" um certo interseccionismo temporal-espacial, cria uma cronologia confusa e paroxística, como no capítulo Dois em que o narrador-protagonista retorma ao sítio da família onde morara cinco anos antes, ao deitar-se na cama ele se obssedia com a presença de um estranho do outro lado do olho mágico o apartamento. Aí o leitor embaralha-se por não saber em que território exato se encontra o personagem: no sítio ou no apartamento?

CAPÍTULO 3

O rapaz negro grande, corpulento e gordo de sunga de borracha, vem empurrado pelos guardas, os pulsos algemadoss e o corpo curvado repete-se em outro capítulo mais a frente.

A obssessão paranóide do personagem lhe atormenta:

"Não adianta ficar aqui parado. Eu não posso me esconder eternamente de um homem que não sei quem é.Preciso saber se ele pretende continuar me perseguindo." p.51

OLHAR DE SUPERFÍCIE

O narrador passa pelas coisas com extrema indiferença e alienação, como se os fatos não guardassem em si significações profundas.Que desdobra-se na relação com o outro marcada pelo afastamento e pela indiferença.

"Pensei que ela fosse dizer 'tá satisfeito?', mas não diz mais nada, fica deitada de bruços, soluça com o corpo inteiro, e não sei o que fazer. Só posso olhar o corpo dela se deitando, o lado esquerdo bem mais que o direito e, olhando aquilo, de repente me vem um forte desejo. Eu mesmo não entendo esse desejo, é contra mim.É um contra-senso, pois se ela agora me chamasse, e com a boca molhada dissesse 'vem', ou 'sou tua', ou 'faz comigo o que der prazer', talvez eu não sentisse desejo algum." p.53

A FALTA DE PROPóSITO

"Paro no meio-fio e faço de conta que espero um táxi. Um táxi freia e eu saio andando com a mala, fingindo conferir a numeração dos edifícios.Dobro a esquina e tomo uma rua sem movimento; talvez um assaltante me livre da mala.Com o sono em dia e de banho tomado, poderia andar por aí até amanhã, sem compromisso. Mas um homem sem compromisso, como uma mala na mão, está comprometido com o destino da mala" p.53

A PERDA DE IDENTIDADE UNA E ESTÁVEL DO NARRADOR:

"Teria escolhido uma roupa adequada, se bem qeu ali haja gente de tudo que é jeito; jeito de banqueiro, jeito de playboy, de embaixador, de cantor, de adolescente, de arquiteto, de paisagista, de psicanalista, de bailarina, de atriz, de miliar, de estrangeiro, de colunista, de juiz, de filantropo, de ministro, de jogador, de construtor, de economista, de figurinista, de literato, de astrólogo, de fotógrafo, de cineasta, de político, e meu nome não estava na lista" p.53

"Meu cunhado me alcança com o amigo grisalho, a quem apresenta dizendo 'é esse'.O grisalho diz que é sempre assim, que toda família que se preze existe um porra-louca' p.57

CAPÍTULO 4

O narrador, escondido dentro de um closet, esbarra numa bolsa e, ao enfiar a mão, toca nas jóias da irmã.Num parágrafo ele diz que deixou as jóias no lugar que encontrou; no outro ele pega as jóias e deposita nos bolsos da calça.

CAPÍTULO 5

"Ando na relva para lá e para cá, e para qualquer lado que eu vá o morto me olha de frente, mesmo sem virar o rosto, parecendo um locutor de telejornal mudo." p.67

O narrador protagonista negocia as jóias da irmã que roubou no cap. 04 com o submundo do crime.

"Há um videogame parado na televisão, carros de fórmula 1 no grid de largala" p.72

"O céu amanhece encarnado, e vem por aí um sol rancoroso" p.75

VÍNCULOS PESSOAIS ESGARÇADOS

"Meu amigo bebia comigo nsa psicina, e àquela altura a sua conversa já não fluia. Acho que falava da litertura russa, mas não tenho certeza, pois as palavras saíam enroladas e se perderam. Mas a sua imagem me volta cada vez mais nítida; lá está a correntinha de ouro no pescoço, meio embaraçada, a pinta cabeluda logo abaixo do cotovelo, as costelas saltada no flanco feito um teclado, o calção branco com três listas verdes verticais. Só não consigo me lembrar dos pés do meu amigo. Vivíamos descalços, e não me ocorre ter olhado alguma vez aqueles pés. Nunca reparei se eram grandes ou bonitos. Não sei dizer se os pés do meu amigo eram enormes, como os dos professores de ginástica assasinado." p.76.

IMPRECISÂO

No cap.06 o leitor é informado que o professor de ginástica assasinado pelo miehê e um amigo poeta do narrador-protagonista não são a mesma pessoa.(p.76)

Já na p.77 e no páragrafo seguinte passar a ser a mesma pessoa através do recurso à imaginação, reminiscência.

"Imagino meu amigo recebendo rapazes no apartamento. Meu amigo no sofá da sala, tomando campari e dizendo poesia para os rapazes. Com os pés descalços no sofá, mas disfarçados entre as almofadas, meu amigo passando os cabelos por trás da orelha, e imagino algum rapaz se irritando com coisa toda. Meu amigo abrindo o álbum dos poetas franceses, e o rapaz se encolhendo no sofá.E enchendo-se de ódio, e sofrendo de um outro ódio por não entender que ódio cruzado é aquele que o domina, e que é feito de muita humilhação e que é dezprezo ao mesmo tempo. Imagino a poesiaq sendo interminável e o rapaz enlouquecendo, indo buscar uma corda no varal, ou uma faca na cozinha, mas daí pra frente já dá mais pra imaginar, porque o meu amigo nunca seria professor de ginástica" p.79.

O único índice textual que intersecciona o amigo poeta e o professor de ginástica num só personagem é a ideia-fixa que o narrador-protagonista tem pelos pés de ambos.

OLHAR DESARMADO QUE NADA ESPERA

Este olhar "abandona os combates". Nada espera, não distingue oposições e não crê em militância.

"E disse que eu devia fazer igual ao escritor russo que renunciou a tudo, que andava vestido de camponês, que cozinhava seu arroz, que abandonou suas terras e morreu numa estação de trem.Disse que eu também devia renunciar às terras, mesmo que pra isso tivesse de enfrentar minha família, que era outra bosta.Também eram bosta toda lei vigente e todos os governos; e o eu amigo começou a se inflamar na varanda, gritando frases, atirando pratos e cadeiras no pátio, num escárceu que acabou juntando o povo do sítio para ver. Ele gritava 'venham os camponeses' e os camponeses que vinham eram os jardineiros, o homem dos cavalos, o caseiro velho e sua mulher cozinheira, mais os filhos e filhas e genros e noras dessa gente, com as crianças de colo. Várias vezes o meu amigo gritou ' a terra é dos camponeses!' e aquele pessoal achou diferente". p.78

A RECUSA DE DAR SIGNIFICADO À EXPERIÊNCIA

"Dessa noite eu não me esqueço porque terminou na cidade, num apartamento de cobertura perto da praia, onde uns estudantes de antropologia comemoravam a formatura. Não conhecíamos ninguém, e não sei como fomos parar naquele lugar" p.78

FALTA DE PROJETO

"Penso que, quando o ruivo vender as jóias, o meu quinhão dê para vier o que, oito meses, um ano, talvez mais.Talvez dê para viajar, conhecer o Egito, ir para a Europa e andar no metrô onde as mulheres usam jóias.(...)Não me desagrada estar assim suspenso no tempo, contando os azulejos da psicina, chupando as mangas que o velho me trouxe" p.80

DESORIENTAÇÃO TEMPORAL

"Acordo sem saber se dormi pouco ou demais.É um meio de tarde, mas não sei de que dia" p.83

"Sei que passa um pouco do meio-dia porque o movimento dos carros é intenso por igual nos dois sentidos" p.99

CAPÍTULO 8

Quando o narrador-protagonista tenta deixar a mala de maconha (trocada pelas jóias da irmã) no apartamento do amigo, ao sair do lugar ele vê o negro gigante e gordo de sunga de borracha imitando onça vindo gingando na avenida no meio do engarrafamento, dirigindo-se ao edifício do amigo com um canivete na mão, que descascava uma laranja. O leitor pode perceber algo de familiar nesta cena e ela é antecessora da cena em que o mesmo negro gigange de sunga saí do apartamento algemad pela polícia. Só que no cap.03 ela é a conclusão de uma sequência que iniciou no Cap.08, ou seja, a enunciação dissolve e inverte a causalidade temporal.

Ensaísta e pesquisador.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

FORTALEZA DESEMPREGADA


Começo de 2011
Tenho 38 anos
Estou desempregado
no quintal da outra casa
toca uma música brega qualquer
a ansiedade por novos rumos
me devora
como um pedaço de rocambole da padaria próxima
que me custou 1.75
mexo na carteira e sobrou cinco centavos.
E a tal crise dos quarenta deve tá começando.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

A NATUREZA SOBERANA


Da janela do meu quarto
O açude de Mazagão
resfria a casa rústica.
Bichinhos de inverno
nas paredes.
Sapos coacham ao longe.
Nas horas altas da noite
leio sobre revolução
enquanto o povo dorme
em casarões ou casebres
agasalhando sonhos burgueses.