domingo, 27 de fevereiro de 2011

O PROBLEMA QUEER, O FIM DO SISTEMA DE GÊNEROS, SEXUALIDADES


O PROBLEMA QUEER, O FIM DO SISTEMA DE GÊNEROS, SEXUALIDADES

Charles Odevan Xavier

Este estudo é muito ambicioso começando pelo próprio título. E para tal me amparei numa bibliografia que inclui o estudo Teses pelo fim do sistema de gênero da ativista cearense Ilana (publicada na Revista Contraacorrente Nº. 10 Maio-Agosto de 2000), no zine Incógnito: pós-identidade queer do ativista paraibano Lucas Altamar e também no livro Preconceito contra homossexualidades: a hierarquia da invisibilidade de Marco Aurélio Máximo Prado e Frederico Viana Machado publicado pela Editora Cortez em 2008.

Mas é lógico que para falar de queers, gênero, sexualidades; a bibliografia não pode só se resumir aos citados.Também vale à pena ler a obra ensaística de João Silvério Trevisan (como também sua excelente obra ficcional); assim como, valeria ver os contos, romances de autores como Silviano Santiago, Caio Fernando Abreu e João Gilberto Noll.

Outro problema desse meu estudo é que ele tem como destinatário principal a militância anarquista ou libertária que lê meu Blog. E esse público não gosta muito do academicismo ou intelectualismo pedante..Por outro lado, não terei culpa se o texto trair aqui e ali um ou outro academicismo, que pode ser interpretado como beletrismo preciosista ou pedantismo esnobe.Minha intenção foi a de fazer um texto mais claro e acessível possível, um texto militante sem dúvida. Espero ter conseguido.

AS TESES PELO FIM DO SISTEMA DE GÊNEROS

“Toda a vida humana foi em nosso tempo, submetida ao domínio da economia através do desenvolvimento histórico do sistema de produção de valores.”
Ilana


O texto Teses pelo fim do sistema de gêneros é um texto de 2000. E como tal reflete aquele momento de efervescência em torno da agenda dos chamados movimentos de Antiglobalização, da AGP(Aliança Global dos Povos) e das agitações dos manifestantes contra a reunião da OMC em Seattle em 1999.

Ilana, na revista, apresenta o texto como uma primeira versão de um conjunto de teses apresentadas como contribuição ao debate, ao Seminário Internacional Sobre Gênero em San Cristobal de las Casas, Chiapas, México, em Maio/Junho de 2000.

O texto é longo, denso e apresenta em 16 longas teses um vigor crítico e cáustico impressionante. Talvez o leitor encontre uma versão virtual na Internet, basta colocar o título nos buscadores da internet que talvez recupere alguma coisa.

Inclusão ou exclusão do mercado? Trata-se assim de uma completa economização da vida, da redução da vida à economia. Eis a constatação inicial de Ilana.

“O mercado é a supressão radical do indivíduo”.Isso significa que enquanto sou trabalhador, proprietário – ou negativamente, uma desempregada, uma despossuída – (é sempre desse modo que um indivíduo existe para e no mercado), não sou um indivíduo, ou seja, não sou alguém dotado de existência, sentimentos, aspirações, desejos próprios e únicos, mas sou precisamente um mais de uma espécie, ou seja, um trabalhador, um proprietário, um desempregado.

“A negação da individualidade que se realiza sob o domínio do mercado se apresenta, contraditoriamente, como aparição do indivíduo.”

“È assim que os movimentos sociais que manifestam a explosão da reivindicação da diferença são continuamente integrados na lógica mercantil: mulheres – trabalhadoras, consumidoras, nicho de mercado que se abre com a explosão da luta em torno do direito feminino; GLS – consumidores, nicho de mercado, e mercado potencialmente abundante, dizem os analistas, nicho de alta rentabilidade, de alta expectativa de consumo. Negros – consumidores, nicho de mercado: “Negro classe A também consome”. O “politicamente correto” é a expressão mais visível, na esfera dos direitos, da tentativa de captura pela lógica mercantil, da explosão da diferença; todas as formas discriminação são passíveis da intervenção de um advogado litigante em busca de indenizações.”

Ilana fala na estetização que “transforma movimentos autônomos de reivindicação do direito à diferença em ‘nichos de mercado’ é apenas a sua face mais visível: “um novo modo de ser mulher”, “Negro é lindo”...assim, os mass media, incorporam cotidianamente, os apelos da diferença como apelos de consumo”.

Ilana fala do que entende por inclusão social: “trata-se da inclusão social do diferente pelo e no mercado. Redução, portanto, da diferença, à identidade abstrata de ‘consumidores’.

Ilana é radical e propõe a destruição do Mercado: “Destruir o mercado é condição sine qua da constituição da individualidade, da aparição real das diferenças negadas pela universalização da forma mercadoria. Se não nos contentamos em ser portadores (ou em nossa maioria, nas condições do capitalismo atual, não portadores) de mercadorias, é preciso pôr no lugar das relações mediadas pelo dinheiro, relações diretas entre os indivíduos. Sem compreender a centralidade da necessidade da destruição do mercado, não é possível sequer falar de vida: estaremos sempre na esfera do simulacro, na esfera da pura representação da vida.”

Na tese 9, llana define o que entende por Gênero: “O gênero é uma invenção histórica da humanidade, um modo de identidade, de supressão da diferença que se origina numa dada diferença/identidade naturais, a amplifica e institui a partir dela todo um sistema hierárquico e classificatório.

Ilana é contra a naturalização do Gênero: “O gênero não é, pois, um dado natural, mas um modo historicamente determinado de classificar os indivíduos da espécie humana com base numa dada identidade/diferença biológicas, apenas uma entre tantas possíveis.”.

Ilana questiona o papel da tradição: “Se a tradição, se a herança patriarcal é já fundamento de tal naturalização do sistema de gêneros, a introdução das relações mercantis, mais que reforçar a naturalização aprofunda, amplia e universaliza tal naturalização.”

Ilana dimensiona o papel da hierarquização: “O Gênero – como todo sistema classificatório – implicou, historicamente, uma classificação, uma normatização e uma hierarquização. È a partir da identidade de gênero que se instituem as representações próprias à ‘natureza’ do Masculino e do Feminino: o macho caçador – provedor, a fêmea reprodutora; o masculino, ativo e o feminino, receptivo.”

Algo permanece: “uma permanência central: a hierarquização dos papéis e o lugar da subalternidade do Feminino.”.

A ativista cearense dimensiona o patriarcado: “Foi do ponto de vista de sua gênese histórica, o patriarcado que inaugurou o poder nas relações humanas. A dominação de gênero é, assim, historicamente, fundadora – anterior, portanto à dominação étnica, à dominação de classe.”.

E Ilana recomenda que na negação do sistema capitalista: “Se a negação do sistema, como foi dito acima, encontra o seu lugar privilegiado, quanto ao sistema de gêneros, nas mulheres e homossexuais, pela sua condição de subalternidade, que seja no combate à subalternidade submetendo ao combate mesmo a idéia de gênero enquanto tal, ou seja, que o combate à subalternidade do feminino e à exclusão possa ir à raiz do problema compreendendo que a crítica à situação de opressão feminina ou contra a homofobia só se realiza, na radicalidade, como crítica ao sistema de gêneros em sua totalidade, ou seja, como crítica ao sistema enquanto tal.”.

Em tom ligeiramente diferente é o texto do ativista paraibano Lucas Altamar Incógnito: pós-identidade queer. Lucas começa o texto com bom humor e ironia dizendo não achar agradável fazer um “dossiê de estudos queer”. E se assume como um queer falando da perspectiva de dentro, enquanto os acadêmicos falam do queer bacharelisticamente.

Diferente de Ilana, que por ser professora universitária, imprime um tom de seriedade ao texto, Lucas tem um estilo que comporta digressões pessoais e narrativas, uso de gíria juvenil, entre outros recursos estilísticos.

Tanto que diz ser seu estudo “uma produção marginal queer”.

MAS O QUE DIABO È QUEER MESMO?

“Paradoxalmente, admitimos mais uma vez que a pós-identidade queer exprime uma recusa em levar a sério as identidades, que há um século, serviriam para designar e mais frequentemente que outra coisa, em ostracizar os indivíduos em razão de seu sexo, de seu gênero ou de suas diferenças eróticas”.

Lucas Altamar

Segundo as pesquisas filológicas que Lucas fez, Queer (kui’r) vem de uma etimologia confusa que tanto registra o termo literal “bizarro”, mas que pode ser também mas atualmente entendido como “original, excêntrico, singular, raro, infrequente”. Pelo que entendi da explicação de Lucas Altamar, o termo vem do coloquial inglês, seria a gíria mais próxima de “estranho” em português, parecendo ser a superposição do significado da palavra queen “rainha” Assim o significado desta confusa gíria seria usado para fazer alusão a um ser masculino bastante efeminado, pois este seria ao mesmo tempo uma rainha e algo masculinamente excêntrico.

Em sua pesquisa, o ativista paraibano diz que o termo foi variando de época para época e de lugar para lugar.

A HISTÓRIA DO QUEER

Enquanto Ilana centra sua munição discursiva no Mercado, Lucas vê o Estado como inimigo máximo.E vê o queer como uma movimentação que surge da necessidade de um libertação dos separatistas e excludentes reivindicações dos movimentos que anteriormente tinha o status de oprimidos e que, na sua avaliação, acabaram sendo absorvidos pelo Estado.

Lucas entende identidade como “contíguo de caracteres próprios e exclusivos de determinada pessoa. Este conceito, entretanto, está ligado a atividades da pessoa, à sua biografia, ao amanhã, sonhos, mitos, características de originalidade e outras características relativas ao sujeito.”

Segundo o autor do CD Verborréia, o movimento gay identitário hoje gosta datar seu ponto de início a partir do final dos anos sessenta, e, em particular é claro, dos motins de Stonewall em 1969.

QUAL A PROPOSTA DE LUCAS ALTAMAR?

“Nós queers chamamos a uma segunda revolução sexual, mas, uma liberação que transformaria mesmo o modo de pensar a sexualidade e de compor com ela, e assim compreender sobre os planos social e político”.

Em suma, o “queer compreende, portanto, rejeitar diretamente as identidades dicotômicas homem/mulher, masculino/feminino, hetero/homo.”.

O autor se reconhece tributário do legado do movimento LGBT e feminista, mas pretende ser mais radical.

Lucas diz que feministas, lésbicas e gays ortodoxos não se cansam de criticar a perspectiva queer, “em razão de sua vontade reunida que terminaria por minimizar ou apagar, acreditam eles, a especificidade de uns e outros.”

“Não exigimos que cada um negue seus pertences, mas antes que percebam seu caráter contingente, arbitrário e político”.

“Nossa vontade é de emancipação e até de subversão em matéria de sexualidade”


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisando os dois autores, Ilana e Lucas Altamar, perceberemos que dois estilos de apreensão da realidade se antagonizam em alguns momentos e enquanto em outros são complementares.

Ilana, professora de Filosofia e leitora da crítica da economia política de Marx, referencia sua tese do fim do sistema de gêneros, dentro do esquema conceitual da teoria do valor e do fetichismo da mercadoria.

Lucas Altamar, poeta multimídia e ativista anarco-punk queer, procura destruir a noção de movimentos identitários a partir de sua vivência contracultural, respalda sua crítica dentro das lides do anarquismo contemporâneo.

Eu vejo um problema na tese Queer. Trata-se de uma crítica aos movimentos identitários – negro, feminista, LGBT, que propõe, no final das contas, outro movimento identitário: o queer. Ou seja, eu não posso ser homem, ser mulher, ser homo, ser hetero, ser bi, mas posso ser queer.Então o que parece a rigor ser uma tentativa de livrar o ser humano de etiquetas ou gavetas classificatórias, acaba criando uma nova gaveta classificatória: o queer.

Mas eu posso estar equivocado e talvez não tenha entendido o queer em toda sua potência ou latência revolucionária. Um outro texto de outro zineiro, ativista e realizador audiovisual, Rui, já acrescenta mais dados à questão; utilizando-se de uma categoria teórica que eu não conhecia – heteronormatização.

Parece que a questão queer embora tenha começado no underground da contracultura homoafetiva americana na década de 60, pode ainda suscitar várias interpretações divergentes ou convergentes.

E caso o leitor se interesse, no site de downloads www.4shared.com há uma versão eletrônica do texto de Lucas Altamar.


Ensaísta e pesquisador.

3 comentários:

Wander disse...

Para falar de gênero é preciso situá-lo na história. Ao fazermos isso veremos que a grotesca separação que vem civilização afora marcando a vida de todos nós colocando a todos de um lado os homens, de outro as mulheres e excluindo totalmente os demais, surgiu a partir de um determinado momento histórico.

É sabido que nas civilizações pagãs, como é o caso do helenismo e mesmo da civilização Romana, antes do cristianismo, havia uma perfeita harmonia entre as diversas formas de convivência social. Os "Bacanae" são evidencias que chegam até os nossos dias dessa democracia sexual existente na antiguidade.

A coisa começa a mudar com a penetração dos hebreus no Império Romano e a consequente introdução do cristianismo como religião oficial. A própria gênese dessa crença determina uma drástica separação dentre os seres humanos. O chamado pecado passa a ser responsabilidade da mulher, afinal foi ela quem ofereceu a maçã. E o judaísmo, assim como seu rebento principal o cristianismo se transformaram em religiões básicamene masculinas, sendo a mulher relegada a um plano básicamente secundário. Assim foi durante toda a história do cristianismo até os nossos dias quando, apesar de todo o desenvolvimento do modo de produção capitalista, a mulher ainda recebe bem menos, em termos salariais, que o homem.

O que dizer então das demais formas de gênero, os homossexuais, lesbicas, bi e transexuais? A essas formas o cristianismo dominante simplesmente associou ao mal e, via de regra, eram levados à fogueira aqueles que assim se assumiam.

Portanto, a questão de genero está íntimamente ligada ao desenvolvimento da civilização judaico cristã, matriz da nossa atual sociedade de mercado. Cabe a essa sociedade a responsabilidade pela situação de inferioridade social vivida pelas mulheres, assim como de exclusão vivida pelos homossexuais e demais formas de gênero e somente com a sua substituição por novas formas sociais que excluam o cristianismo, essa igualdade poder voltar a ser alcançada.

XAVIER, Charles Odevan. Escritor profissional de livros especializados. disse...

Wander,

Não sei se nessa democracia sexual greco-romana estavam incluídos os escravos.

Acho difícil que os patricios iriam se harmonizar com seres considerados inferiores, por serem apenas mercadorias e não terem o estatu de seres humanos.

Por isso acho que não havia tanta harmonia assim naquela época.

Wander disse...

Charles,

Não vem ao caso se havia na sociedade antiga escravos. Na nossa moderna sociedade existem também excluídos de tudo.

O que me referi foi a moral vigente na antiguidade, na qual não havia, mesmo dentre os escravos, distinções de gênero como existe em nossa época.

Segundo os livros sobre o assunto, havia uma certa tolerância dos senhores para com os escravos e muitos deles se tornavam parte da família na qual trabalhavam. A moral vigente era a mesma, sem distinções de gênero.

Como eu já disse, isso só veio a aparecer com o cristianismo e a sua moral excludente para com as mulheres e também para com os homossexuais.

Negar isso, a meu ver, é não considerar a história. Marx nos mostrou a importância da análise histórica para a compreensão da realidade de todas as épocas.