segunda-feira, 28 de março de 2011

O SAMBA "MACHO-MAN" DE ROBERTO SILVA




O SAMBA ‘MACHO-MAN’ DE ROBERTO SILVA
Autor: Charles Odevan Xavier

Este estudo é uma análise da obra do sambista carioca Roberto Silva. E foi inteiramente baseado numa coletânea segmentada lançada pela Gravadora EMI, cujo título é “Raízes do Samba – Roberto Silva”.

Tal projeto de coletânea foi coordenada por Sonia Antunes e Maurício Dias. E o repertório foi uma seleção de Carlos Savalla.

Roberto Silva não é compositor, mas intérprete de sambas urbanos. Pelo menos se compôs algo na vida, Carlos Savalla deixou de fora da coletânea ou talvez se quer foi gravado no seu potente vozeirão.

Roberto Silva é um sambista octogenário da velha guarda e que na capa da coletânea revela como seu imaginário está ligado à boêmia carioca, já que na capa o sambista aparece numa foto vestido socialmente (como diziam os mais antigos : vestido decentemente). Na foto tirada provavelmente na meia idade – quem sabe até mais moço, o problema é que esses homens de antigamente se vestiam com tanta formalidade e solenidade, que a roupa acabava os envelhecendo nas fotos – Roberto Silva posa tendo o bonde e o Arco da Lapa por trás.

O sambista de “Risoleta” (Raul Marques/Moacyr Bernardino) começou a gravar na década de 60 e a maioria dos sambas da coletânea citada são setentistas.Mas mesmo tendo gravado nos anos 60, o samba de Roberto Silva tem um sabor nostálgico e um cheiro ligeiramente envelhecido.Talvez isso se dê pelo fato do intérprete ter escolhido compositores das década iniciais do século XX.Ou por uma certa fixação nos anos 40 e 50.Época em que a música popular brasileira é conhecida pelo povão como “música de dor de cotovelo”, ou mais pejorativamente o povão se refere a esse período musical como “música de corno”.

Quais são as temáticas cantadas pelo sambista carioca? Roberto Silva escolheu cantar os males e dores do amor. Nelas há muito espaço para desilusões, desencontros amorosos ou conquistas do tipo machão galanteador.

A obra interpretada por Roberto Silva exibe um painel do velho macho latino ocidental, mas com um quesito peculiar que o diferencia de um Nelson Gonçalves ou um Francisco Alves: o fato de ser um negro pobre e trabalhador, lidando com negras ou mulatas malvadas – “A Mulher que eu gosto” (Ciro de Souza/Wilson Batista) e a endiabrada “Risoleta”.

Roberto Silva em sua época foi um dos poucos negros que conseguiu atingir o público branco pelo enorme potencial de sua voz. E também porque cantava aquilo que os machões brancos queriam ouvir.

E se o leitor quer provas do machismo de Roberto Silva, que tal esses versos dos compositores Haroldo Lobo e Wilson Batista, “Emília”:

“Eu quero uma mulher/que saiba lavar e cozinhar/que de manhã cedo me acorde na hora de trabalhar/Só existe uma e sem ela eu não vivo em paz: Emília/Emília/Emília/Não Posso mais/Ninguém sabe igual a ela/Preparar meu café/Não desfazendo das outras:/Emília é mulher/Papai do Céu é quem sabe/A falta que ela me faz/Emília/Emília/Emília/ Não Posso mais”.

Os leitores podem retrucar dizendo que o machismo não é dele, mas dos compositores.Isso seria uma forma de tangenciar o machismo do intérprete.De tangenciar o intangenciável.É claro que se sou intérprete eu canto aquilo com que concordo ou afino ideologicamente.Jamais a cantora gospel Aline Barros cantaria um ponto de umbanda ou um hardcore anticapitalista anarquista.

Assim, não só nessa faixa “Emília” como em outras o sambista exibe todo o seu machismo de fundo patriarcal. Mas isso diminui sua obra enquanto artista? Aí entramos numa seara muito complexa. Há excelentes artistas que foram reacionários em política e ideologia, como por exemplo o poeta americano Ezra Pound e o contista argentino Jorge Luis Borges.

Não podemos deixar de reconhecer que mesmo gravando na década de 70, pelo menos 10 ou 15 anos depois das explosões dos movimentos feministas da década hippie, Roberto Silva poderia ter escolhido gravar sambistas mais esquerdizados e arejados como Paulinho da Viola e Chico Buarque.

Se não optou só uma pesquisa mais profunda na biografia do intérprete daria conta de explicar o “porque” desse machismo tão anacrônico e démodé. Não podemos esquecer que o intérprete gravou nos anos da ditadura militar e o patriarcalismo era incentivado vívidamente pelos militares, como o é até hoje pelas forças armadas.

ROBERTO SILVA E OS CULTOS AFROS

O sambista como bom carioca também gravou uma música reveladora de sua ligação com os cultos afros. Senão vejamos o que pensar desses versos de “Pisei num Despacho”(Geraldo Pereira/Elpídio Vianna):

“Desde o dia que passei/numa esquina/e pisei num despacho/entro no samba/meu corpo tá duro/bem que procuro a cadência/e não acho/meu samba e meu verso/não fazem sucesso/há sempre um porém com a gafieira/fico a noite inteira/ no fim não dou sorte com ninguém/mas eu vou num canto/vou num pai de santo/pedir qualquer dia/que me dê uns passes/uns banhos de ervas/e uma guia/está aqui um endereço/um senhor que eu conheço/me deu há três dias/o mais velho é batata/ diz tudo nas atas/ é uma casa em Caxias”

Na composição que não é de Roberto Silva, não se sabe claramente que tipo de culto o personagem vai se consultar. Não conseguimos saber textualmente se está falando da umbanda, da quimbanda ou do candomblé.Mas como se trata do Rio de Janeiro há uma grande probabilidade que os compositores estejam se referindo a uma casa de umbanda, que é um culto tipicamente carioca que se espalhou para o resto do país e sofrendo adaptações onde chegou pelo País.Tanto que aqui no Ceará, que majoritariamente cultua o catimbó, depois de um certo tempo os catimbozeiros passaram a usar o termo umbanda como uma tentativa de assustar menos os fregueses e vizinhos. Já que na variedade dialetal cearense “catimbó” quer dizer feitiçaria, magia negra pesada.

A obra do cineasta Roberto Moura “Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro” – 2ª edição – Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Dep. Geral de Doc. e Inf. Cultural, Divisão de Editoração, 1995 – é um excelente roteiro para se entender como se deu o surgimento da umbanda carioca no contato com babalorixás e yalorixás vindas da diáspora baiana. Vale a pena ser lida, pois é uma obra que esmiúça bem os aspectos religiosos, políticos,antropológicos e musicais daquele período.

Mas e quanto ao samba “Pisei num Despacho”? Bem. Despacho é um termo muito próprio da umbanda ou macumba carioca pré-umbandista (Não podemos esquecer que a umbanda surgiu somente nos anos 10 do século XX). Anteriormente a isso os descendentes de escravos cariocas já se reuniam subterrânea e marginalmente num culto mágico conhecido como macumba. Se os compositores fossem ligados ao candomblé teriam usado o termo ebó, o que acaba automaticamente filiando a canção ao imaginário mesmo da umbanda.Nela se cruzam dois universos: o secular, o profano(freqüentar cabarés e gafieiras) e o sagrado (freqüentar pai de santo), como é típico das populações pobres brasileiras.O personagem resolve procurar o sagrado apenas porque começa a se dar mal no campo do profano.Ou como dizem os moralistas kardecistas: o homem nunca procura o espiritual pelo amor, mas pela dor.O personagem espera do pai de santo uma terapêutica que já deve ter usado anteriormente e tido bons resultados(tomar uns passes, um banho de ervas e usar uma guia preparada), se não tivesse dado certo com certeza o personagem da canção não buscaria este tipo de recurso, o que talvez sinalize que ele funcione.Aliás, qualquer atenção dada por um homem ou mulher mais velhos sempre funciona.E na música a senioridade do pai de santo é realçada e valorizada, como acontece no continente africano e é reproduzido também nos ‘locus’ religiosos da diáspora negra.

Mas para dizer mais coisas eu deveria ser carioca, afinal tendo ido ao Rio de Janeiro uma única vez na vida, não dá para analisar com propriedade se essa faixa revela mesmo um jeito carioca de ser ou se falha em alguma coisa. A minha suposição é de “Pisei num Despacho” não só define bem essa “carioquicidade” que eu conheço na prática superficialmente - quando fui no Rio fiquei apenas 10 dias lá e muito dentro de onde estava sendo realizado um evento estudantil universitário, eu por exemplo não conheci a “noite boêmia” carioca – mas define muito bem a chamada brasilidade. E a peculiaridade do chamado “jeitinho brasileiro” tem muito a ver com essa constante sensação de viver na corda bamba ou no fio da navalha.Pois o Brasil é um país pobre em termos de distribuição de renda e riquíssimo em termos de renda concentrada.Assim, a experiência de ser brasileiro passa quase sempre pela escassez material e pela enorme criatividade espiritual. É quando se faz perceber um Estado ausente no atendimento da penúria dos mais pobres e presente apenas na criminalização de quando esses mais pobres se organizam e também numa iniciativa privada mesquinha e elitista, que define o jeito brasileiro de ser e pertencer.

Roberto Silva representa muito bem o imaginário masculino, negro e pobre do Brasil de uma certa época, que talvez ainda sobreviva com força na roda de conversas de velhos aposentados jogando cartas, dominó e “porrinha”. O trabalho do sambista merece ser ouvido, a voz dele é potente, os arranjos são interessantes e são uma forma de mergulhar na história negra brasileira.

Pesquisador e ensaísta.

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