terça-feira, 19 de agosto de 2008

ESCRITA DE CULHÕES: UMA LITERATURA MAL EDUCADA


Este estudo tenta tecer uma reflexão sobre um tipo de literatura, de escritura, não muito estudada ou levada em consideração pela academia, pela Teoria da Literatura e ou pela crítica literária.

Estou falando e evocando a literatura escrita por homens.Houve até um jornalista que, muito apropriadamente, batizou o "corpus" que vou analisar de literatura de culhões ou escrita de culhões.E essa categoria literária eu nunca ouvi falar nos corredores do Mestrado em Literatura por exemplo, o que revela que pode ser mais uma invenção de jornalista para vender livro.Como também pode revelar que a Academia tem uma certa postura burguesa ou asséptica de torcer o nariz para autores que deliberadamente violetam a norma culta ou que no entender dela faria uso de procedimentos estilísticos e de enunciação que fugiriam do cânone literário.

Para a discussão não ficar muito no campo da abstração vou começar a evocar autores que, no meu entender, fariam totalmente ou em parte uso dessa 'escrita de culhões'.

A literatura durante algum tempo pareceu dissociada do corpo de quem a produz e de quem a enuncia.Fruto de inspiração das Musas, produto de elaboração lingüística sofisticada e enamorada do Vernáculo, a literatura não seria o lugar para expressar o corpo e suas secreções ou pulsões.O corpo até ali não era ouvido nem sentido na literatura.O corpo era negado.Produção do espírito e apenas do espírito, a literatura exilou o corpo durante muito tempo.

A literatura seria então o lugar da expressão do sublime, do puro, do inefável, do sagrado.Escritor bom era aquele que sabia ler Latim, Grego ou Hebraico.Escritor bom era aquele que conhecia e dominava a Gramática ou que na infância tivesse feito análise sintática de "Os Lusíadas". Poeta bom era aquele que dominava a escanção do verso, ainda que seu verso fosse chocho e insípido.Isso foi o cânone da Literatura ocidental por muitos anos.

A literatura deveria ser comportada e certinha, bonitinha.Na Grécia Antiga a Tragédia seria o gênero literário maior.E como gênero maior teria que ter personagens maiores e cenários maiores.A Tragédia grega era o lugar dos grandes sentimentos e dos grandes homens.Leia-se aqui grandes homens como os reis, rainhas.E lugar dos grandes temas.Assim, a tragédia grega deveria falar apenas das peripécias amorosas, das mesquinharias e das disputas de poder envolvendo Reis e Rainhas ciumentas e vingativas ou de filhos querendo tomar o lugar do Rei pai.A linguagem deveria ser nobre, rebuscada.

Na Grécia Antiga os escritores que quisessem falar de pessoas menores e sentimentos menores deveriam escrever Comédias.É nas comédias que era permitido existir a plebe grega e romana, amantes escravos e soldados fanfarrões.É nas comédias que era permitido existir o calão, o palavrão, obscenidades, erotismo.Porque tudo isso era associado as classes populares, ao populacho, ao povão.Então assim, o grave, o solene era associado ao Rei e a Rainha, já o rídiculo, o obsceno, o grotesco, o bizarro, o escatológico era associado ao escravo e ao soldado.

Na Idade Média com a influência da Patrística e suas elocubrações tagarelas sobre a natureza de Deus, os escritores e poetas foram tolhidos em sua expressão estilística.E muitos os que ousaram escrever coisas sobre sentimentos considerados menores ou pessoas menores foram aconselhados a usar pseudônimos.

E mesmo na chamada Modernidade, os autores que ousaram relatar pessoas fazendo coisas não muito nobres ou que descreviam o uso das partes baixas do corpo foram perseguidos e presos como Marquês de Sade ou o poeta Charles Baudelaire em seu livro seminal "As flores do Mal", que ousou fazer versos sobre práticas de Lesbianismo e acabou tendo de pagar um multa pesadíssima ao governo francês.

A literatura a partir do Romantismo da Segunda geração, também chamada de Ultra-romantismo ou geração byroniana, passou a ser transgressora e a falar das coisas que eram consideradas tabus abertamente.Fruto talvez de uma sociedade que passava da tranquilidade camponesa da vida rural e de pequenas cidades comerciais para o frenetismo das grandes cidades pautadas pelos ritmos da Revolução Industrial.

Uma nova classe social surgiu em oposição a nova classe burguesa proprietária: o proletariado urbano.E lentamente esse novo ator social começou a aparecer na literatura.

Inicialmente a figura grosseira e desagradável do operário urbano analfabeto ou semi-escolarizado apareceu na obra dos romancistas franceses como Flaubert, Balzac e Zola.

E na literatura inglesa começou a aparecer de forma vigorosa na obra de Charles Dickens.Ele mesmo um ex-operário que teve a infância marcada pela pobreza, pela miséria, pelos maus tratos de capatazes de fábrica que espancavam os filhos dos operários na frente deles.Esse cotidiano duro marcou como ferro em brasa o imaginário do menino Charles Dickens e isso é patente em sua obra autobiográfica, em que meninos driblam as longas jornadas de trabalho com os livros escolares.

Na Literatura brasileira, por incrível que pareça não veremos isso na obra de um Machado de Assis.Mulato pobre, gago, epilético, Machado de Assis não fala de pobres, gagos, negros ou mulatos em sua literatura.Pelo contário, imitando José de Alencar, o autor de "Memórias Póstumas de Bras Cubas" só falou dos mexericos da corte do Rio de Janeiro.Só que em José de Alencar isso fazia sentido.Afinal José de Alencar era um importante latifundiário, proprietário de terras e escravos e enamorado pela bajulação ao poder imperial de Dom Pedro II.Então José de Alencar ao falar de personagens da Corte fazia todo o sentido, porque ele era branco, rico e da Corte.Mas Machado de Assis, não.Mas gostaria de ser.E sua literatura ao falar de gente rica e branca reflete esse desejo de Machado pertencer a esse círculo de sangue azul.

Já Lima Barreto optou por outro caminho.Era mulato, pobre e alcóolatra e em sua literatura há a presença de mulatos, negros, pobres, alcóolotras e os favelados do Rio de Janeiro da época.E pagou caro por isso.Por mostrar pessoas e cenários que não deveriam ter sido mostrados Lima Barreto chegou a perder emprego, teve diversas internações em manicômios e terminou nas ruas do Rio de Janeiro mulambento e cheirando a cachaça.

No Modernismo Brasileiro isso começa a mudar.Até porque o cenário político é outro.O desenvolvimento de grandes centros industriais trouxe num novo desenho urbano, em que há mais espaço para a diversidade de opiniões ou ideologias e também até para o confronto nada fraterno entre essas concepções.

Assim, enquanto havia escritores tributários de uma literatura solene, série, nobre e de personagens elevados, legado do beletrismo Parnasiano, da influência das hozanas simbolistas e da fetichização do vernáculo de um Rui Barbosa de um lado, havia também escritores comprometidos com as transgressões das vanguardas européias.

E ser transgressor nesse contexto na era só experimentar no campo lexical ou fornecendo pirotecnias sintáticas, não.A transgressão também estava em cantar o homem comum, mediano, medíocre, banal.

A literatura a partir daí passar a cantar a banalidade do cotidiano e passou a penetrar nos segredos de alcovas, nas obssessões e perversões sexuais das pessoas.

Porque se em José de Alencar as pessoas apareciam vestidas em seus paletós, com os escritores modernistas são os operários e as pessoas de baixo poder aquisitivo que surgem em suas cozinhas preparando feijoadas ou nuas em seus quartos entre orgasmos e gases fétidos involuntários.

Estou falando de Jorge Amado que mostrou o cotidiano dos pobres e negros da Bahia.E como disse Miguel Falabela em comentário inteligente sobre o extinto Programa do Ratinho:" - O Programa do Ratinho mostra a cara do Brasil real.E é uma cara feia". Assim, Jorge Amado fala das greves dos estivadores dos portos de Salvador, fala dos coronéis cacaueiros do Ilhéus e suas taras sexuais pelas negrinhas que trabalhavam em suas fazendas, fala das macumbas, dos candomblés.Enfim, é uma literatura que fala do povo em todo o seu vigor e brutalidade, não se furtando em registrar a língua grosseira popular.E até os seus palavrões dão o colorido do rico painel do povo baiano.

Moreira Campos, na literatura cearense, também registra a grosseria vocabular do povo cearense, especialmente dos machos cearenses.Aliás seus personagens são sempre homens excitados e que pensam em sexo o tempo todo.

A "Escrita de culhões" seria a expressão desses escritores homens que fazem uma certa apologia da virilidade, da masculinidade e da força bruta.E que elege como personagens homens simples e pouco escolarizados.E como cenários butiquins, cabarés, motéis, lugares onde a língua portuguesa se despe do policiamento gramatical e assume toda a rudeza do cântico aos buracos da mulher amada. Talvez até como uma manifestação de uma certa insegurança em sua orientação sexual, porque muitos associam a literatura e a poesia como coisa de mulher ou de homens emasculados, abaitolados, aqueles menininhos que em vez de ir jogar bolar, fazia todos os deveres de casa, rezava todas as rezas da avô, ou seja, um mariquinha.

E se no universo da Literatura Brasileira esse erotismo aparece viril, vigoroso mas suavizado pelo amolecimento sensual do homem latino; já na Literatura Inglesa, a "Escrita de culhões" aparece de uma forma tão crua e seca que resvala ao patológico e ao crime, devido a própria secura e rudeza da língua inglesa e da cultura anglo-saxônica que a inspira.Os americanos, os ingleses e os alemães não são muito dados a ficar desdobrando a mulher amada com poemas apaixonados ou com seduções românticas como fazem os latinos.Pelo contrário, vão logo direto ao assunto e abrindo a braguilha. Basta ver o cinema pornô produzido em países de língua inglesa.Lá as mulheres são tratadas como putas que devem ficar caladas, enquanto seus machos as violam com brutalidade, palavrões e até simulação de estrangulamento.Porque são culturas muito focadas no homem, no macho.E isso resvala também na literatura desses países.

Basta ver a grosseria de um Ernest Hemingway muito empolgado em exibições de força e virilidade gratuita em caçadas e safaris na África ou em cópulas violentas com mulheres submissas.

Ou a literatura barra-pesada de um Charles Bukowsky mostrando homens bêbados e fedorentos roçando a barba em mulheres dentro de apartamentos de quinta categoria.

Ou ainda a obra de um Henry Miller, em que personagens fazem comentários extremamente depreciativos sobre as proezas sexuais de suas esposas gordas e que expelem gases mal-cheirosos durante a cópula.

Esse estudo poderia apontar para exaustivas análises em pârametros psicanalistas ou dentro das premissas da crítica feminista, mas confesso que conheço pouco a aplicação da Psicanálise a esse tipo particular de expressão literária, a literatura escrita por homens, como também, não tive muito acesso a estudos feministas sobre romancistas e poetas declaradamente machistas.

Tudo isso ainda deve render estudos.Até porque a crítica feminista ficou durante muito tempo voltada para o seu próprio umbigo: a contemplação de escritoras que supostamente escrevem com o útero.

Pouco se escreveu sobre essa literatura feita por quem tem testículos.Testículos esses tão obssedantes que conseguem ficar patente na urdidura desses escritores citados e de outros que poderiam ser citados também e ficaram de fora.

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