O SERTÃO POLIFÔNICO DE EUCLIDES DA CUNHA
Charles Odevan Xavier
Escrita entre 1897 e 1902, ano em que é publicada, a obra “Os Sertões” surgiu como um desdobramento de artigos feitos sobre a campanha de Canudos pelo autor, encomenda para o Jornal O Estado de São Paulo, quando este foi correspondente de guerra. A obra se divide em três partes: “A terra”, “O homem” e “A luta”.
A TERRA
Se o percurso gerativo de sentido é esburacado, na metáfora genial de Pierre Lévy (“O que o Virtual”), não menos íngreme é a trilha aberta para o leitor por Euclides da Cunha nos “Sertões”. A obra começa difícil e arenosa. O vigor do universo euclidiano nos faz pensar em outro escritor pré-modernista: Augusto dos Anjos. Enquanto o poeta paraibano elegeu a Química e a Biologia como musas, o jornalista carioca vai buscar na Geologia e na Antropologia as fontes inspiradoras. Em “A Terra”, Euclides da Cunha lança o leitor no solo granítico do agreste baiano. O percurso euclidiano é duro e acidentado, em que toneladas de termos técnicos, tal qual os pedregulhos, tornam a leitura cansativa e enfadonha. E os “cladódios” sucedem aos “flamívomos” e aos “heliotrópios”, exigindo leitores atentos e eruditos dicionários. No entanto, o ensaísta cede lugar ao poeta aqui e ali, em meio a metáforas dignas de um José de Alencar, e as descrições, inicialmente maçantes, vão tornando-se a força do volume, como cactos verdes se insinuando no fundo cinza e ocre da caatinga. Aliás, o caráter fortemente pictórico da obra de Euclides foi bastante explorado por autores como a cearense Maria Inês Sales no seu “Cicatrizes submersas dos Sertões: Euclides da Cunha e Descartes Gadelha em correspondência” (Ed. Cone Sul). Em "A Terra”, vários Euclides se revezam: o geólogo, o topógrafo e o meteorologista que tenta descobrir a gênese das secas e prescreve um remédio, revelando toda a sua formação em Ciências Naturais.
O HOMEM
Na parte denominada “O Homem”, outros Euclides se revezam: o etnógrafo, o historiador e o engenheiro enfezado com a arquitetura caótica do arraial de Canudos, a qual ele sentencia como se “tudo aquilo fosse construído, febrilmente, numa noite, por uma multidão de loucos”. Euclides da Cunha constrói o sertanejo entre o seu antipático darwinismo social e a poesia dos seus oxímoros. Daí o sertanejo ser mostrado, simultaneamente, como “sub-raça” e “Hércules – Quasímodo”. E é nessa trajetória que percebe-se que, se a Sociologia superou o determinismo evolucionista das primeiras páginas, a Literatura o redimiu. A tese defendida pelo jornalista é clara e horrorosa: o sertanejo sofre não só pelo ambiente atroz, mas pela mestiçagem de raças que lhe dá um caráter raquítico e tendências cretinas. O militar argumenta sobre o desnível entre o Norte e o Sul. O clima ameno do Sul e o sangue indo-europeu fizeram o gaúcho: um homem forte e inteligente. A mestiçagem e a aridez do Norte deram no jagunço: um imbecil apático. O renomado sulista, no seu ufanismo, esquece, inclusive, de fenômenos destrutivos como as geadas que arruinam a agricultura dos climas temperados. O etnografo reveza-se com o historiador e vemos nessa parte, a gênese do habitante da costa brasileira (um misto de ladrões portugueses com nativas tapuias), a origem do jagunço, do feudalismo peculiar da região, da religiosidade sertaneja (mescla de catolicismo medieval com crenças afro-ameríndias) até chegar no perfil de Antônio Conselheiro e de seu Arraial. Segundo Walnice Nogueira Galvão, Euclides da Cunha revela diversos problemas polifônicos. O Euclides da Cunha abolicionista e republicano, crente ferrenho do progresso, entendido este como uma mistura legítima de luzes com técnica, tem que conciliar o jornalista porta-voz dos oprimidos com o estrategista militar. E é nesse tensionamento de vozes que reside a beleza da obra. A seu ver, Antônio Conselheiro era simultaneamente um grande homem, enquanto líder, porém um degenerado, enquanto encarnação das piores características dos mestiços. Como resolver tal dilema ao nível do discurso? Recorrendo a figura da antítese, em que dois opostos são violentamente aproximados, ou sua forma mais extremada, o oxímoro. Isto é, resolvendo o problema não ao nível do raciocínio, mas ao nível da Literatura. Desse modo, Antônio Conselheiro, diz o autor, era tão extraordinário que cabia igualmente na História como no hospício. À medida que a obra vai sendo escrita, Euclides relativiza sua crítica e os juízos preconceituosos vão sendo abandonados. Canudos, progressivamente, torna-se o símbolo de uma raça forte, de lutadores incansáveis. “Os Sertões” deve ser lido como uma obra dinâmica, dialética, em que conceitos são rapidamente superados e a escrita se faz maior do que o estreito projeto determinista que marca o livro. Caso a obra se esgotasse em acusações preconceituosas teria, seguramente, desaparecido, como tantos livros escritos no contexto sobre o tema e calcados pelo mesmo arsenal teórico positivista e evolucionista. Se ficasse restrito a visão segundo a qual a luta das raças é a força motora da história, o Conselheiro, um louco e Canudos, um homizio de bandidos, o livro estaria relegado ao esquecimento. Nas últimas páginas da obra, Euclides afirma que o sertanejo é a “rocha viva da nacionalidade” e que a dinâmica do genocídio promovida contra Canudos fora expressão do movimento anticivilizatório revelador de crimes que as nações são capazes de praticar contra si mesmas. Assim, Euclides atravessou o longo caminho que vai da superficialidade do esquema, para a grandeza nascida de uma sensibilidade que capta a extensão e a profundidade dos acontecimentos passados às margens do rio Vaza-Barris.
A LUTA
A última parte mostra as várias expedições do Exército contra Canudos e a conseqüente resistência sertaneja. O texto ganha intensidade dramática e se torna uma sucessão de eventos nos quais se misturam a coragem, a violência e a barbárie da guerra, desse modo, a escrita euclidiana assume ares épicos. Euclides centra sua munição discursiva na quarta expedição, comandada por Artur Oscar. Faz um balanço dos erros táticos cometidos pelos oficiais do exército: problemas de abastecimento, falta de mobilidade e adaptabilidade às condições do terreno, utilização de formas clássicas e convencionais de guerra contra um inimigo que agia segundo estratégias guerrilheiras. É o Euclides estrategista militar falando. Quando o texto se dedica a mostrar as covardes degolações que os militares praticavam contra os sertanejos, revelando que os civilizados de ontem se tornam os bárbaros de hoje: “A degolação era, por isso, infinitamente mais prática, dizia-se nuamente. Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada. Não era a ação severa das leis, era a vingança”... é o jornalista porta-voz dos oprimidos que fala. Quando descreve a resistência final dos conselheiristas em meio a fome, a doença, a jornada guerreira, Euclides revela que o preconceito inicial se transforma em admiração e respeito. Ler “Os Sertões” é cruzar por uma obra polifônica, como diz Adilson Citelli, em que vários gêneros dialogam, incluindo-se o jornalismo, a poesia, a narrativa ficcional; múltiplas vozes se confrontam: a da cultura costeira e urbana, das filosofias do século XIX, a dos militares e políticos, a da Igreja. Desse modo, várias áreas do conhecimento cruzam o livro, assim como, diferentes tipos de discurso. Assim, o livro é documento enquanto registro de uma época e monumento pela beleza de sua escrita.
Mestrando em Letras pela UFC.
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