KARL MARX: DOBRADIÇA, ESQUIZOFRENIA OU POLIFONIA?
Charles Odevan Xavier
Este texto é mais um “brainstorming” sobre a questão, do que propriamente um ensaio científico seguindo todas as regras do cânon metodológico.
Parte da perplexidade perante o contato com a afirmação da existência de um ‘duplo Marx’, anunciada aos quatro ventos por um imenso tecido conceptual auto-proclamado como “Teoria Crítica Radical”.
Busca ver as implicações deste Marx duplicado e procura, a partir do conceito da polifonia elaborado pelo lingüista russo Mikhail Bahktin, colocar o problema em outros termos.
O DUPLO MARX
A tese do ‘duplo Marx’ é defendida por um organismo internacional denominado Movimento pela Teoria Crítica Radical ou Internacional Emancipacionista. Tal instituição é composta por uma gama heterogénea de pensadores e atores do que vem sendo chamada de esquerda não-oficial.
Quando diz-se heterogénea, é porque parece não haver uma homogeneidade conceptual entre seus membros. E isto fica claro, às vezes, num único documento lançado pelo grupo. Por exemplo, na brochura “O Eterno Sexo Frágil?” de autoria de Robert Kurz e Roswitha Scholz, publicada no Ceará pela União das Mulheres Cearenses, é patente a discordância entre esposo e companheira (os autores são casados), em que a feminista alemã dá alfinetadas no grupo/revista liderado pelo marido, a saber: o(a) controvertido(a) movimento/revista Krisis. E isto é ruim? Pensamos que não, pois olhando retrospectivamente, percebemos que a falta de homogeneidade é que produziu as coisas mais interessantes do pensamento humano: desde a experiência fundadora da Padaria Espiritual no Ceará do século XIX até a Teoria Crítica de Frankfurt.
Quem são os outros atores deste Movimento Pela Teoria Crítica Radical? A resposta conduz a idiossincrasia heterogênea da origem de seus membros. Entre eles citaríamos o ensaísta Jorge Paiva, brasileiro maoísta que lia Guy Debord em 68; Anselm Japp, um ensaísta alemão que mora na Itália e escreve em italiano; Enrique Dussel, professor universitário mexicano; Ruy Fausto, filósofo, professor da USP; Moishe Postone, professor da Universidade de Chicago; Ernst Lohoff, co-editor da Revista Krisis; entre outros. Segundo Jorge Paiva, o movimento também se espalha pela Áustria, Portugal, Espanha e África do Sul. O que permeia estes teóricos de origens tão díspares é o conceito capital do ‘duplo Marx’, categoria basilar geradora de outras categorias.
A Lingüística diz que toda palavra ou signo ativam esquemas cognitivos prévios. Esmiuçando no Dicionário, o termo ‘duplo’ quer dizer dobrado, duplicado; que contêm duas vezes a mesma quantidade. O adjetivo ‘duplicado’ nos remete a outro adjetivo, ‘dúplice’ e somos surpreendidos por uma definição dicionarizada que registra um aspecto pejorativo da coisa, pois dúplice é o que é duplicado, duplo, mas é também o que tem fingimento ou dobrez. Assim, seríamos levados a existência de dois Marx: um verdadeiro e outro falso. Aqui acabamos entrando no perigoso terreno do juízo de valor. Pois quem teria capacidade de julgar e apontar o Marx verdadeiro e o Marx falso construídos pelo movimento operário? E para piorar as coisas, lembramos daquele episódio em que o próprio Marx disse categoricamente: - Não sou marxista. O que significa o duplo Marx na visão da Internacional Emancipacionista? Significa a existência de dois Marx num mesmo pensador. O Marx exotérico da teoria da mais-valia e, por conseguinte, da teoria da exploração; e o Marx esotérico da teoria do valor e respectivamente da teoria da alienação. E o processo se complica, porque segundo eles não se trata de uma divisão cronológica, como por exemplo alguns teóricos insistem na existência de um Jovem Marx e um Marx maduro. O que pareceria natural e já aconteceu em outros setores: um Lacan freudiano (do início da carreira) e um Lacan lacaniano (da maturidade). O problema não é esse. É outro. Os teóricos da Crítica Radical afirmam que esse ‘duplo Marx’ coexiste numa mesma época e numa mesma cabeça. Desse modo, o 1º volume do “Capital”, dedicado à Mercadoria, nega os volumes restantes. Aliás, eles informam, baseados provavelmente em Rosdolsky e Mézáros, que a introdução do “Capital” foi escrita depois da obra “pronta”. Assim, flagramos um processo de formatação teórica “sui generis”: um pensador que começa escrevendo o final de uma obra, para depois elaborar seu início. Uma obra muito discutida e citada pelos emancipacionistas que revelaria claramente a duplicidade de Marx é o livro “Grundrisse”. Outro fenômeno “sui generis” na trajetória intelectual de Karl Marx. Livro denso e complexo, lançado postumamente em edições precárias e reduzidas (pouco mais de 300 exemplares), o “Grundrisse” só vai aparecer em traduções francesas, espanholas e inglesas na década de 70 do século XX. E diga-se de passagem, até hoje a obra não conta com uma tradução portuguesa, o que revela sintomaticamente o descaso da esquerda brasileira pelo seu conteúdo tão controvertido. Nesta altura dos acontecimentos, quando somos apresentados a um Marx duplicado ou dobradiço, vem automaticamente a associação com a esquizofrenia. Segundo João-Francisco Duarte Júnior em “O que é Realidade” – 8ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1991- a esquizofrenia seria a dificuldade do esquizofrênico em erigir para si mesmo uma identidade una e coerente, fragmentando-se numa multiplicidade de “eus”. Observando o alcance da Teoria de Marx, poderíamos detectar a existência de um Marx filósofo, um Marx economista, um Marx político, entre outros, num perpétuo rodízio intelectual. Desse modo, a categoria ‘duplo Marx’ mostra-se inadequada para captar a complexidade da obra de Karl Marx.
MARX: ESQUIZOFRÊNICO OU POLIFÔNICO?
A teoria da Polifonia elaborada pelo lingüista russo Mikhail Bahktin (não por acaso, um marxista) é a que parece dar melhor conta da questão. Segundo o lingüista russo a polifonia se dá através do processo da intertextualidade. Ou seja, cada texto é composto da soma de outros textos anteriores. Cada texto recupera as vozes de um texto anterior, seja confirmando ou negando-as. Desse modo, Karl Marx (aqui um metonímia) dialoga com Proudhon, Hegel, Smith, Ricardo, Aristóteles. Assim, Karl Marx seria uma espécie de palimpsesto onde estariam sobrepostas as vozes e marcas de pensadores anteriores e contemporâneos de Marx. A maior prova deste argumento seria a obra “Miséria da Filosofia” que dialoga com “Filosofia da Miséria” de Proudhon. Quando dizemos diálogo não trata-se de uma alegre conversa de compadres, pois o diálogo pode ocorrer também de forma tensionada. Chegamos assim, através da teoria da polifonia, a uma discordância da idéia de um duplo Marx. Pois examinando a complexidade da obra do pensador alemão, chegaríamos a conclusão não de um duplo, mas de um quádruplo ou óctuplo Marx, ou seja, existe Marx ao gosto do freguês, ao gosto do intérprete. Ou será que o Marx do PC do B é o mesmo do PCR ou o do PT ou o da LBI? Desse modo, propomos não um duplo Marx, perdido entre os pilares da ponte que separa “O Capital” do “Grundrisse”, mas um Marx polifônico que traz em si uma babel de vozes e referências da experiência humana.
Charles Odevan Xavier
Mestrando em Letras pela UFC.
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