Esta narrativa é fruto da minha memória e se passa dentro de um ônibos lotado num final de tarde crepuscular e tristonho, de um dia qualquer e de um mês qualquer e prosaico de um ano impreciso que pode ser 1976 ou 1978, em plena ditadura militar da década de 70 no Brasil e no Ceará.
Não consigo lembrar com exatidão qual a idade que tinha nesse episódio.Mas devia ter uns cinco ou seis ou sete anos de idade mais ou menos, posto que nasci em 1972 em plena ditadura Médici.
Lembro apenas das emoções contidas nesse evento sem graça, sem glamour e sem maiores atrativos como a vida das pessoas que pegam ônibus lotados no centro da cidade de Fortaleza e vão para as suas respectivas periferias empobrecidas depois de um dia estafante de trabalho.
Esta narrativa é um olhar oblíquo sobre a ditadura militar da década de 70. É um olhar oblíquo e inviesado sobre os anos de chumbo e cacetete, porque naquele momento eu era apenas um menino totalmente afastado de supostos protagonistas e heróis da resistência, ou da dita abertura democrática.Eu estava bem longe do centro de decisões geopolíticas ou biopolíticas das coisas, pelo simples fato de que eu era filho adotivo de uma professora de ensino fundamental e alfabetização.Uma mulher batalhadora sem dúvida, mas totalmente avessa ao universo dos livros e da interpretação crítica da realidade.Muito pelo contrário, a minha mãe adotiva era a cidadã preferida por um governo autoritário daquele ou da época em que vivemos atualmente: totalmente alheia aos noticiários, totalmente desinteressada por economia, política, sociedade, comportamento.Mais uma professora a reproduzir o Hino Nacional, a ensinar os alunos a rezarem o pai nosso e a salve rainha.Ou seja, mais uma operária da mediocridade.
E eu era um menino dentro daquele ônibus lotado no colo de minha mãe adotiva.Totalmente entediado e pensando como pensa uma criança sem muita elaboração intelectual: que vida chata, que chatice.E aí ficava pensando e me angustiando.Se for para casa vai ser chato e vou ficar sozinho sem ter com quem brincar.Se for para escola que minha mãe fundou para conseguir uns trocados a mais, para complementar o orçamento, vai ser chato do mesmo jeito, porque também não vou ter com quem brincar.
E era estranho para mim, eu tão pequeno, e já pensando nessas coisas: na chatice da vida, na monotonia, na rotina, num cotidiano insípido e incolor.Hoje talvez com uma certa elaboração intelectual vejo que já desde criança eu trazia o germe da insatisfação que me acompanharia e me acompanha por toda vida.
Não consigo lembrar qual era a música que saia dos altos falantes daquele ônibus.Mas com certeza devia ser alguma coisa permitida e tolerada pela Ditadura ou quem sabe até uma super rebelde banda de rock de protesto americana.Como era americana e cantava em inglês, a Ditadura permitia que as pessoas ouvissem dentro de ônibus ou lugares populares porque sempre ninguém iria saber mesmo o que o cantor revolucionário estaria cantando mesmo.Ou seja seria cômodo para a Ditadura promover música americana, ainda que de protesto, contanto que fosse em língua inglesa e que o povão não entendesse.
Mas acho que talvez nem isso.Com certeza deveria está tocando algum brega da época inventivando os homens a serem mais machistas do que eram ou algum forró promovendo a sociedade de consumo.Enfim, não lembro.
Só lembro claramente dos meus sentimentos e do rosto triste das pessoas.Eu via nos rostos todo o enfado daquelas pessoas.De como a vida era insuportável para elas.E aquilo me deprimia.
Fortaleza me deprimia naquela época e me deprime hoje.Naquela época havia uma ditadura militar financeira e monetarista.Hoje há uma ditadura do dinheiro, do mercado tão financeira e monetarista quanto aquela.
Ou seja, naquela época os discordantes, os dissidentes sociais não podiam se reunir.Hoje eles podem mas não o fazem, porque custa caro alugar uma sede para as reuniões.Custa caro manter-se vivo.Custa caro pagar as contas.Custa caro alimentar-se como uma comida cada vez mais artificial, envenenada de agrotóxicos e com poucos nutrientes.E pra variar continua custado caro PEGAR ÔNIBUS.
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