quarta-feira, 21 de outubro de 2009

DOSSIÊ GUY DEBORD


Nesse estudo pretendo dialogar com duas importantes fontes bibliograficas.Uma é a obra Guy Debord de Anselm Jappe, em tradução portuguesa por Iraci P. Poleti e Carla da Silva Pereira, editada em Portugal pela Editora Antígona em Abril de 2008.E a outra é a obra A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo de Guy Debord em tradução brasileira por Estela dos Santos Abreu, editada no Brasil pela Editora Contraponto.

Falar da obra do francês Guy Debord não é uma tarefa muito fácil, como também não é nada fácil falar do que chamo de marxismo sofisticado.Dentro dessa estirpe estariam arrolados autores como Georg Lucács, Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamim, Karl Korsch, Jürgen Habermas, Herbert Marcuse.

Se se fala num suposto marxismo sofisticado ou até mesmo num marxismo sombrio, como se depreende da obra da filósofa brasileira Olgária Matos, a maior estudiosa dos frankfurtianianos e seus tributários em terras brasileiras, poderíamos também falar num oposto: um marxismo vulgar.

Nesse marxismo vulgar arrolariamos autores como Vladimir Lênim, Leon Trotsky, Joseph Stálin que em suas obras reduziam todo a carga dialética e multiforme do filósofo alemão Karl Marx a um be-a-bás simplista, como estivessem a fornecer kits de revolução pré-fabricados para qualquer país ou contexto geográfico.No fundo a obra de Lênin, Trotsky e Stálin apenas esmiuçam mexericos, intrigas e fracassos da revolução de modelo bolchevique implantada na União Soviética, sem contudo aprofundá-los de forma mais crítica ou extendem o que havia sido dito por Marx e Engels em O manifesto comunista. E decididamente o Manifesto é uma obra menor, é apenas um panfleto encomendado pelos operários da A.I.T. (Associação Internacional dos Trabalhadores) dentro da bibliografia marxiana.Bem diferente do Marx vigoroso, rigoroso e exaustivo de O capital, Manuscritos econômicos filosóficos, Crítica ao programa de Gotha e o controvertido Grundrisses.

O chamado marxismo sofisticado diferente de propor soluções fáceis ou receitas prontas de revolução, faz aquilo que Daniel Bensaid apropriadamente chamou de aposta melancólica. Ou seja, a aposta na revolução mas sem a garantia da vitória.

E é compreensível da parte desses teóricos uma postura se não pessimista, pelo menos cética no potencial revolucionário da classe trabalhadora.

E todo esse suposto pesssimismo ou ceticismo tem a ver com as denúncias do fracasso das revoluções de modelo bolchevique que foram criadas no território soviético e exportadas para lugares como a China, a Albânia, a Coréia, o Vietnam, a Tchecoslováquia, Angola, Moçambique, Cuba e até a vacilante experiência socialista na Nicarágua.

E não é só a postura desconfiada com esses governos supostamente operários-camponezes, autores como Lucács e principalmente os frankfurtinianos passaram a desconfiar até do potencial humano para qualquer emancipação desreificante, principalmente depois da 2ª guerra mundial.

Enquanto no século XIX parte da classe média letrada e identificada com as reinvindicações operárias via na ciência e na técnica a emancipação possível da espécie humana, já no século XX a decepção da intelectualidade mais à esquerda com os rumos utilitaristas e desumanos da ciência e da tecnologia, provocaram uma ressaca e um certo mal estar dentro do campo da esquerda.

Quando se soube que as conquistas mais modernas da Medicina e da Engenharia estavam sendo usadas nos campos de concentração nazista para exterminar pessoas, isso provocou uma espécie de trauma insuperável em autores como Adorno e Benjamim.

Dessa forma, estaria criado o que venho chamando de impasse civilizacional.

E dentro desse cenário sombrio e de perplexidade crítica como se situa o pensamento de Guy Debord?

Guy Debord, se for um marxista, é um marxista bem herético. Para começo de tudo negava a organização em estruturas partidárias verticalizadas, sua Internacional Situacionista mais se parece uma rede espontânea de grupos de afinidade à maneira anarquista. Aliás, a relação com o anarquismo em Debord não para por aí. Debord esforçou-se por reunir e traduzir a obra completa do anarquista russo Mikhail Bakunim. Mas se certos interesses e certos métodos utilizados por Debord e os militantes da IS se pareciam com anarquismo, não se pode afirmar que Debord e a IS fossem anarquistas. Pelo simples fato de que os anarquistas, ou parte considerável deles, não se preocupam em esmiuçar a crítica da economia política, a forma-valor e o fetichismo da mercadoria como faziam os membros da I. S.

Alias, segundo Anselm Jappe e Robert Kurz até os anarquistas (mesmo em versões radicalizadas como as experiências zappatistas no território mexicano de Chiapas) cometeriam o erro de querer libertar-se pela economia, do que querer libertar-se da economia.Ou seja, segundo esses autores articulitas da revista EXIT, os anarquistas, assim como os verdes, os neo-liberais, os democratas cristãos, os comunistas dos PC's, os socialistas mandelistas do Le Monde Diplomatique, os trostskistas, os republicanos, todos eles reinvindicam dinheiro ou distribuição de dinheiro, quando o conveniente seria a eliminação do dinheiro.

A Internacional Situacionista foi um coletivo também editorial, que editou uma revista chamada Internacionale Situacioniste. O grupo surgiu a partir de 1957 e reuniu elementos que provinham da Internacionale Letriste, do grupo COBRA e do Movimento Internacional para uma Bauhaus imaginista.

Segundo Jappe, quando esses diversos grupos pré-existentes se reuniram num novo é porque demonstravam estarem fartos da arte, enquanto esfera separada da vida. Eles queriam a partir dali uma espécie de fusão entre arte e vita. Arte e cotidiano. Ou radicalizar a arte, a tal ponto de superá-la.

Debord critica as vanguadas artísticas como o futurismo, o dadaísmo e especialmente o surrealismo e seu elogio à irracionalidade, quando passou a perceber que o elogio surrealista do irracional foi recuperado pela burguesia para embelezar ou justificar a completa irracionalidade do seu mundo. Debord vê que após 1945 o que antes era um protesto contra o vazio da sociedade burguesa, encontra-se agora fragmentado e dissolvido "no comércio estético corrente, como uma afirmação positiva desse vazio. Assim, não poupará críticas ao existencialismo e sua "dissimulação do nada' ou pela alegre afirmação de uma perfeita "nulidade mental" na obra do dramaturgo irlandez Samuel Beckett ou do romancista francês Robbe-Grillet.

E quais seriam então as metas situacionistas? À Arte já não deve expressar as paixões do velho mundo, mas contribuir para inventar novas paixões: em vez de traduzir a vida, deve ampliá-la.

Os situacionistas vão conviver com uma dualidade quase sempre tensionada entre propor uma revolução puramente política ou propor uma revolução cultural. E nessa dissonância interna eles projetavam a criação de uma nova civilização e de uma real mutação antropológica.

No iníco a IS apostou muito no signo da experimentação, que vai desde a prática do détournement - reproduzir trechos de histórias em quadrinhos da cultura de massa nas páginas da Internacionale Situacioniste, porém com as falas alteradas nos balões ditos por personagens como Capitão América ou Tio Patinhas, que acabavam citando trechos irônicos ou paródicos com certas ocorrências do cotidiano sindical francês. Outras coistam também foram experimentadas como a pintura industrial de Pinot Gallizio produzida em grande escala sobre longos rolos vendidos a metro, para ironizar a produção em série da tecnologia de modelo fordista. O arquiteto Constant elaborou a planta de uma cidade utópica "A New Babylon", que simplesmente propõe a destruição da grande metrópole.

Debord passa a fazer experiências na área cinematográfica. Em algumas ele resolve testar as expectativas tradicionais do espectador acostumado com a sintaxe mastigada do cinema americano, fazendo justamente o oposto. Num de seus filmes, o espectador fica mais de meia hora na sala de projeção em total breu, em que Debord que provocar ou eliminar a passividade do espectador dentro daquilo que ele passou a chamar de "Sociedade do espetáculo". E consegue, o público pagante sai indignado com o cineasta. Em outros, a única coisa que o espectador vê na tela é um fundo branco, enquanto Debord recita fragmentos da "Sociedade do Espetáculo", trechos da revista Internacionale Situacioniste, num tom enfadonho e com uma voz esganiçada.

As realizações cinematográficas mais bem realizadas do ponto de vista fílmico são aquelas em que Debord abandona a necessidade juvenil de chocar o espectador e passa a mostrar filmes baseados em trechos de publicidade da TV Francesa, em que Debord comenta em off certos hábitos vazios da sociedade de consumo.E isso só vai acontecer já na maturidade do Debord cineasta, quando o autor de "Sociedade do Espetáculo" já parece dominar melhor os ritmos entre som e iamgem e a demonstrar mais experiência com a ilha de edição.

No iníco da década de 60 enquanto membros da IS como Debord, o belga R. Vaneigem e o húngaro A. Kotanyi vão radicalizar suas posições estéticas, no sentido de entender que a esfera da expressãoe está realmente superada, tendo a libertação da arte sido "a destruição da própria expressão, parte desse grupo até entenderá que 'a nossa época já não precisa de escrever instruções poéticas, mas de as realizar". Já outros membros não querem abandonar a concepção tradicional do artista nem estão dispostos a a aceitar a disciplina exigida.

Nesse contexto quase todos os artistas da IS declaram-se céticos quanto à vocação revolucionária do proletariado e prefeririam confiar aos intelectuais e aos artistas a tarefa de contestar a cultura atual.

E do ponto de vista da sobrevivência desse membros enquanto artistas, as coisas vão se complicando cada vez mais com a crescente rejeição aso apelos e seduções para que se insiram nas teias da indústria cultural. Um dos membros Pinot Gallizio, é expulso do grupo quando não consegue resistir a uma carreira pessoal nas galerias de arte.

Com o tempo os poucos mebros restantes da IS dada a radicalidade de ser um grupo de artistas que não produz "obras", numa autêntica crítica à sociedade de consumo e à industria cultural, sua maior produtora; a IS acabarai progressivamente abandonando o campo artístico e passando a fazer uam crítica social furiosa e aglutinante que acabariam deflagrando a greve dos 100 mil e as barricadas do Maio francês.

O mercado editorial francês era ou é bem diferente do brasileiro. Enquanto aqui, a classe média consome revistas como Contigo, Caras e Guia Astral João Bidu. O público francês no século XX levava a sério revistaws de debates e discussão.

Assim, podia-se encontrar o orgão dos existencialistas "A les temps moderne'.
Uma certa kierkegaardização e heideggeriarização de Marx na revista "Arguments".
A revista "Critique" em que Michel Foucault publicava seus artigos sobre psiquiatria, penalização e biopolítica.
A revista "Tel Quel" que divulgava teses estruturalistas ou estudos sobre erotismo de Bataille.
A revista "Socialisme ou Barbarie" liderada por Cornelio Castoriades que apesar da crítica à União Soviética, não se aprofundava na forma-valor, no fetichismo da mercadoria e assimilava de forma acrítica antropologia e psicologia.
No mercado editorial francês havia até espaço para a revista "Oulipo", esquisito veículo liderado pelo poeta Raymond Queneau mais interessado em pirotecnias estilísticas (palindromos, reescrituras, pastichos e misturas de poesia com análise combinatória) do que na crítica social ou comportamental.

Debord deve ter arranjado muitos inimigos no meio da intelectualidade francesa, com sua conhecida ironia ferina e ranzinza. Criticava a apologia do nada em existencialistas como Merleau-Ponty, ridicularizava a tese da "morte do homem", 'da história sem sujeito" do estruturalismo vista por ele como a principal ideologia apologética do espetáculo ao negar a história e ao querer fixar as condições atuais da sociedade como estruturas imutáveis.

Com um grupo de afinidade jogou tomates numa conferência do ciberneticista Abraham Molles.

Gozava da mistura indigesta de marxiso e estruturalismo feito por Louis Althusser, zombava do Noveau roman e do cinema de Godard.

Fica muito dificil resumir um pensamento complexo como é o de Guy Debord. O livro de Jappe, apesar do nome, não é uma biografia e pouco podemos deduzir de como Guy Debord conseguiu sobreviver, pagar suas contas e pelo final que teve (o suicídio) podemos inferir que a radicalidade do autor de "Panegírico" deve ter criado muitos problemas de ordem prática, a despeito de no fim da vida, o pensador francês ter arranjado uma amizade com um controvertido empresário que financiou seus últimos filmes e bancou seus livros.